O logótipo da República

As quinas, os castelinhos e a esfera armilar, no universo da representação política e governamental, dão-nos um ar pomposo, como que medieval e monárquico après la lettre.

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No início do documentário tudo era interessante: ver uma personagem entrar por uma porta, dirigir-se a uma cadeira, sentar-se, puxar de um caderno, escrever. Até podia não se tratar de um plano sequência, mas havia um certo fascínio em representar todas estas ações, sem perder pitada. Hoje é comum que uma personagem entre pela porta, de seguida já pode estar a sentar-se e logo a seguir olhamos para o que escreve. Não se trata de velocidade, porque cada um destes planos pode demorar, mas a montagem é sobretudo mais elíptica, elidindo aspetos da ação que já conhecemos — e que não deixam de estar subentendidos.

O que acontece no documentário dá-se um pouco por toda a cultura visual. Os ícones das apps dos telemóveis começaram por ser volumétricos, indicando que ali estava um botão. A informação partilhada de que aquela forma é um botão permitiu a adoção do flat design onde as formas tendem a ser simplificadas e as cores lisas, o que permite que os logos não se percam nas hoje infinitas formas de os inscrever. Sabemos estar perante um botão ativo sem precisar que isso seja graficamente assinalado.

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Em 2014 realizei um documentário sobre a Quinta dos Murças, da marca Esporão, e o designer Eduardo Aires explica-me que chegou ao logótipo da Quinta a partir da inclinação do terreno das suas vinhas. Pude constatar como o logótipo representava de facto as encostas por onde tinha andado. Aires, simplifica-as e, assente num jogo de graus de inclinação, transforma-as no “M” de Murças, limitado pela forma evocativa de um brasão hiper simplificado. O logo, em pouquíssimas linhas, afirma a originalidade e a tradição daquele território.

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Veja-se outro exemplo de simplicidade do designer: o logótipo da corticeira AMORIM, onde um simples corte ao meio da letra “O” remete para a cortiça que envolve a árvore.

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O logótipo que Eduardo Aires desenhou para o Governo da República Portuguesa partilha este grau de eficácia porque, entre outras muitas razões, acerta com Portugal enquanto ideia. Ainda que com problemas estruturais graves, somos uma democracia vibrante. As quinas, os castelinhos e a esfera armilar, no universo da representação política e governamental, dão-nos um ar pomposo, como que medieval e monárquico après la lettre. Já não somos só isso, e é preciso comunicá-lo. Somos antes um país simpático e ativo, temos brilho, recorte e valor. Símbolo do poder executivo, o novo logótipo da República Portuguesa escolhe ser horizontal, inclusivo e lúdico, sem perder seriedade institucional ou rigor gráfico.

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Se era necessário fazê-lo, pergunta-se. Sim, porque o anterior tinha borboto, responde-se. Se ao menos tivéssemos tido antes deste um logótipo que estilizasse a esfera armilar, acompanhada de uns pontinhos a fazer de castelos. Mas não, talha-se à bruta e de uma só vez séculos de história gloriosa. Quando na realidade se tratou de um gesto de grande juventude, que afirma o presente sem se fixar na fase das glórias lá atrás. Mas sem as esquecer tão pouco: estão subentendidas.

O logótipo resulta daquilo que Aires faz sempre com brilhantismo: lê as forças em campo e conceptualiza-as, operando “elipses” e sínteses ao nível da figuração. Esse trabalho, a que chamarei de eloquência pela simplificação, tanto em design como em documentário, deve-se a termos já visto tanto, de estarmos mais cultos, de sermos capazes de com pouco ver o todo — less is more. Se alguma falha se pode apontar ao novo logótipo é o facto de ser demasiado culto, de tão simples.

Mas se cultos é o que devemos ser em democracia, é também isso que o novo logótipo exige e até nisso acerta. O esforço de qualquer governo futuro deveria ser o de honrar o quanto à frente o seu atual logótipo coloca Portugal.

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