Nos 75 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos

Hoje, mais do que nunca, temos de alimentar um movimento global para reafirmar a verdade simples que está no cerne da Declaração: que todos os seres humanos são iguais e que todas as vidas têm valor.

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Numa altura em que o mundo é assolado por crises, o 75.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) deve suscitar mais do que reflexões superficiais. O colapso climático está aí. Há conflitos a proliferar. Os civis fazem parte dos alvos bélicos e a morte de crianças parece ser tolerada. Além disso, os protagonistas das próximas eleições são os autoritários, as democracias estão a desrespeitar abertamente o direito internacional e os direitos humanos são postos em causa por governos de todos os quadrantes. A pobreza e a fome estão a ganhar destaque, enquanto a tecnologia se posiciona para transformar as nossas sociedades.

A incapacidade que temos mostrado em encontrar soluções justas e eficazes tem vindo a minar a confiança nos líderes e nas instituições. Existe uma percepção generalizada de que os direitos humanos são aplicados de forma selectiva – dentro de cada país e entre países. A nível nacional, as mulheres, as minorias e as pessoas com baixos rendimentos têm menos probabilidades de usufruir dos seus direitos, com especial destaque para o acesso à justiça e o acesso aos cuidados de saúde. A nível internacional, há uma gritante duplicidade de critérios, já que os mesmos governos que se esforçaram por proteger os civis na Ucrânia e em Israel não estão agora a fazer o mesmo pelos civis em Gaza e em muitos outros locais. Ao mesmo tempo, é retirada a prioridade a determinados direitos colectivos em todo o mundo, como o direito a um meio ambiente salutar.

Consequentemente, tanto activistas como autocratas se têm tornado companheiros improváveis na crítica ao quadro internacional dos direitos humanos, de que a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) é a pedra angular. Argumentam que a DUDH reflecte um entendimento ocidental restrito dos direitos que carece de legitimidade e – cada vez mais – de impacto, à medida que a outra pedra angular desse quadro, a ordem internacional pós-1945, se tem vindo a desgastar.

Trata-se de um argumento persuasivo. Apontar o dedo e envergonhar – durante anos, a táctica preferida dos activistas – não funciona quando os alvos são mostram qualquer vergonha. O grito de alerta dos direitos humanos foi diluído por acusações de captura pelas elites e de apropriação pelos grupos marginais. Os antigos defensores dos direitos parecem diminuídos ou comprometidos. O próprio sistema multilateral que ancora os direitos está em crise – a sua falta de mecanismos de aplicação e de fundos é, agora, agravada por uma incapacidade de acompanhar desafios como a inteligência artificial.

Mas esta não é a história completa. O Open Society Barometer, numa sondagem realizada junto de mais de 36 mil pessoas num grupo representativo de países, revelou que a maioria das pessoas acredita no valor dos direitos humanos. Mais de 70% afirmaram que os direitos humanos "reflectem os valores em que acredito" e são "uma força para o bem" no mundo.

Diversos agentes, como os advogados de direitos humanos, ONG e organizações internacionais, continuam a dar esperança, apoio e reparação a quem procura justiça e protecção. A estes junta-se um grupo crescente de outros, desde comunidades rurais a povos indígenas, passando por movimentos políticos e sociais. Podem não utilizar a linguagem dos direitos, mas o seu trabalho baseia-se neles. Não se podem dar ao luxo de ter debates teóricos sobre a relevância da DUDH. Precisam de apoio e de soluções concretas.

Para assinalar o aniversário da DUDH, a Open Society encomendou um documento sobre quais as soluções possíveis, escrito por David Griffiths, um defensor de causas e especialista em políticas com mais de duas décadas de experiência diversificada no movimento dos direitos humanos. O documento, intitulado Barometer in Context: Strengthening the Human Rights System (“Barómetro em Contexto: reforçar o sistema de direitos humanos”), apresenta uma série de propostas para dar a devida relevância a este momento, com destaque, entre outros aspetos, para a prioridade à desigualdade económica e às alterações climáticas, a exposição do fracasso dos autoritários em concretizar o que preconizam, a defesa do espaço cívico, o repensar da migração, o alargamento da responsabilização e o reforço do sistema de direitos humanos.

Após 18 meses de investigação e com base em material proveniente de pelo menos 65 entrevistas com pessoas de todas as partes do mundo, bem como do Open Society Barometer, estas propostas são uma inspiração para aquelas e aqueles de nós que se aproximam deste aniversário com o coração pesado. É crucial que evitemos a estagnação e o desânimo, que apenas favorecem os abusadores e os autoritários.

Temos de nos tornar mais criativas e criativos na forma como apoiamos as pessoas que defendem os direitos, quer estejam numa sala de audiências ou num centro comunitário, quer estejam nas ruas a marchar pela redução da dívida e pela justiça climática. Temos de investir nos líderes e nos instrumentos de amanhã, em vez de tentarmos recuperar o atraso com os autoritários, ao mesmo tempo que duplicamos o nosso apoio aos agentes e abordagens tradicionais que continuam a produzir resultados.

E agora, mais do que nunca, temos de alimentar um movimento global – do tipo que não era possível em 1948 – para reafirmar a verdade simples que está no cerne da Declaração: que todos os seres humanos são iguais e que todas as vidas têm valor.

Natalie Samarasinghe é a directora global para defesa de causas da Open Society Foundations

Tradução de Nelson Filipe

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