Meteu uma cunha? Não! Houve influência? Sim! É crime? Não!...

Poucos ignoram o que se terá passado, com a curiosa ausência de documentos, lapsos de memória, recordação tardia de factos verificáveis, etc. É assim que queremos que funcione a sociedade e o SNS?

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Vai por aí uma enorme agitação sobre a investigação de eventuais ilegalidades no tratamento de duas crianças luso-brasileiras com um medicamento extraordinariamente caro. Os jornais, os comentadores e os políticos visados desdobram-se em esclarecimentos e análises. Só algum marciano que tenha acabado de chegar ao nosso país desconhecerá qual o desfecho final do processo!

Como em algumas outras investigações da nossa diligente Justiça, o resultado acabará como já se sabe. Arquivamento e ausência de crime. Portanto poupem o vosso esforço e nosso dinheiro. Ninguém encontrará um documento de um titular de elevado cargo político a dizer que pede para se encomendar um medicamento de nome impronunciável para dar às meninas A e B.

Como noutros processos, bem conhecidos (lembram-se da “fruta para dormir”?), há coisas verdadeiras, mas não crime!

Tudo isto recorda um diálogo famoso, adaptado ao tempo actual:

–​ Recebeu um email?

– ​Sim!

–​ Meteu uma cunha?

– ​Não!

–​ Comunicou a alguém?

– ​Sim!

– ​Influenciou a decisão?

– ​Não!

Etc....

Na verdade, o caso deveria discutir-se em termos de cidadania e respeito pelos princípios de intervenção social.

1. É compreensível que quem se sinta fragilizado tente escrever a todos os poderosos que conhecer, para lhe resolverem o problema. Quem nunca recebeu um telefonema ou mensagem a pedir um jeitinho? Errado é ceder, especialmente em posição de enorme influência, e encaminhar esse pedido “com um despacho”. Será preciso mais alguma coisa além dos gabinetes governamentais pedirem informação, “pois o Senhor Presidente informou-nos deste pedido“? Houve crime? Não! Houve influência? Sim!

A casa Civil da Presidência da República deseja transformar-se na Central de Triagem de consultas dos hospitais públicos? Será original, mas então só é preciso o director-executivo do SNS fazer um despacho nesse sentido... Seguramente se encurtarão as listas de espera de consultas e cirurgias, não é?

2. O processo destas crianças decorreu a uma velocidade avassaladora. A aceitação do pedido de cidadania, a emissão dos documentos consulares, a marcação das consultas, a autorização dos fármacos ainda antes da sua aprovação, a ministração do tratamento, a compra de um comboio de cadeiras e andarilhos que nem foram levantados pelos doentes... Tudo isto é normal? É assim que funciona o nosso SNS?

Como médico, e pediatra, quero tratar todas as crianças que puder. Muitas vezes tenho lidado com a dificuldade de ultrapassar recusas, bloqueios, hesitações e vetos de gaveta a propostas de tratamentos que poderiam ajudar os meus doentes. Mas deveríamos antes pedir aos nossos doentes que vão inscrever-se num consulado brasileiro para terem consulta e o tratamento necessário com extraordinária rapidez, numa original "via verde"?

Poucos ignoram ainda o que se terá passado, reforçado pela curiosa ausência de documentos, lapsos de memória, recordação tardia de factos verificáveis, etc. É assim que queremos que funcione a nossa sociedade, e especialmente o Serviço Nacional de Saúde?

Portanto, deixemos os nossos magistrados ocuparem-se com problemas mais momentosos, pois aqui não é a aplicação das leis que está em causa, mas outras coisas, que não dão cadeia ou multa, mas dizem muito da nossa organização social.

Aconteceu?

Sim!

É crime?

Não!

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