Europa num mundo à la carte

O mundo tornou-se uma amálgama de nações desunidas, com alianças mutáveis consoante os temas. Já nem um bloco central europeu, liderado por moderados pró-europeus, se pode dar por garantido.

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Não há forma mais crua de refletirmos sobre nós mesmos do que através das lentes dos outros, em particular daqueles que, estando distantes, só têm uma perceção do que somos. Ora, foi isso que há umas semanas o European Council on Foreign Relations fez sobre a Europa, em especial a União Europeia (UE), quando lançou um policy brief sobre a opinião pública global.

UE acaba em 20 anos: É verdade, o sonho dos soberanistas, antieuropeístas e populistas de ver Bruxelas ruir vive nas mentes desta opinião pública. Chineses (67%), sauditas (62%) ou russos (54%) consideram que nas próximas duas décadas o projeto europeu vai mesmo acabar. Apesar de, para estes, isto pode ser apenas wishful thinking; para norte-americanos e europeus a desconfiança na UE é também evidente, pelo menos para um terço dos inquiridos. O estudo mostra que existe uma correlação forte entre quem pensa que a UE vai desaparecer e quem acha que a Rússia vai vencer a guerra na Ucrânia. Aparentemente, a falta de credibilidade da União como ator geopolítico relevante aí e noutras paragens, como no Médio Oriente, tem secundarizado alguns dos seus sucessos ao longo das últimas crises – dívidas soberanas, migrantes, "Brexit" e pandemia.

UE geopolítica é mero slogan: A perceção da UE como um ator geopolítico fraco é amplamente disseminada. A maioria dos inquiridos de todo o mundo mostrou-se pouco entusiasmada com o poder coercivo da UE (militar ou económico), em especial quando comparado com potências como os EUA ou a China. A incapacidade de, em qualquer situação de crise, a União moldar a ordem internacional à sua imagem – multilateralismo, interdependências e cooperação – justifica a razão pela qual os Estados se voltam para os EUA, China ou potências regionais quando precisam de garantias. Como diz o relatório, hoje, a ideia de uma UE geopolítica nada mais é do que um slogan. E essa insuficiência, autoinfligida pelo Estados-membros da União, assumir-se-á como uma ameaça existencial à Europa (no caso da Rússia) e porá em risco a sua paz social (no caso do conflito no Médio Oriente).

Soft power, pólvora a secar: À luz dos olhos da opinião pública global, a capacidade de a UE influenciar outros Estados parece precisar de ferramentas complementares (hard power) que protejam os valores e interesses europeus na ordem internacional em (re)formação. Se, por um lado, a maior capacidade de atração da UE continua a ser o seu poder suave – os padrões de vida e valores europeus; por outro lado, as pessoas fora da Europa distinguem entre isso e a (falta de) força e resistência do projeto político europeu. Resultado? Os valores como o Estado de direito, a democracia, a liberdade ou os direitos humanos são considerados muito admiráveis, mas isso não garante à UE um alinhamento político por parte dos outros países. Por outras palavras, esses princípios são os melhores, em tese, mas não são vistos como tendo aplicação ou utilidade no mundo real.

UE num mundo à la carte: Quase dois anos de guerra na Ucrânia, dois meses de reacendimento do conflito no Médio Oriente, a expansão dos BRICS e umas Nações Unidas cada vez mais inoperantes têm mostrado como o mundo se tornou numa amálgama de nações desunidas, com alianças mutáveis, em torno de temas diferentes. É cada vez menos um mundo, se é que alguma vez o foi, onde uma só potência é capaz de impor as suas vontades e onde se pode simplesmente enquadrar a política internacional em termos da dicotomia nós e eles. Já nem sequer é um mundo onde o bloco central europeu, liderado por moderados pró-europeus, se pode dar por garantido. Este mundo, à la carte, é diferente. Nele, segundo o relatório, misturam-se diferentes parceiros em diferentes temas. Nele a UE necessita de i) fomentar uma política de interdependência estratégica; ii) tornar-se num ator geopolítico e geoeconómico mais assertivo; e iii) alargar-se a Leste, incluindo já a Ucrânia.

Este é o mundo no qual vivemos, mas está longe de ser o mundo em que a UE vive. Para já, resta-lhe continuar a ser o parceiro júnior dos EUA para fazer a sua voz ouvir-se no resto do mundo. Mas isto não lhe deve ser suficiente num mundo à la carte, principalmente a partir de novembro de 2024 com um novo cardápio a ser servido após as eleições americanas.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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