A Bíblia e as novelas

Quando parecia estar dedicada à leitura bíblica, entregava-se na verdade às peripécias amorosas da ficção romântica, cheia de homens altos e espadaúdos, bem penteados e bem vestidos.

Ouça este artigo
00:00
02:05

A vida doméstica foi decorrendo sem grandes flutuações. A São vivia alheada das perturbações sociais e políticas. Soube que Salazar caíra da cadeira, tal como não lhe escapou, dois anos depois, a notícia da sua morte, mas não percebeu muito bem o que se passou com a chamada Primavera Marcelista. Habituou-se a ler os livros românticos que a Esperança lhe trazia quando a visitava, fazendo-o às escondidas. O único livro que poderia ler sem ser recriminada era a Bíblia. Recorria a ela por dois motivos: porque tinha necessidade de uma certa religiosidade que a conectava às outras mulheres da aldeia, mas sobretudo porque a usava para esconder as novelas que passara a gostar de ler e lhe traziam uma espécie de conforto sentimental. Ou seja, em certas ocasiões, quando parecia estar dedicada à leitura bíblica, entregava-se na verdade às peripécias amorosas da ficção romântica, cheia de homens altos e espadaúdos, bem penteados e bem vestidos, educados e delicados, todos tão diferente daqueles que a rodeavam. A São irritava-se, exasperava-se, maravilhava-se com as manifestações de paixão e ciúme, sentia-se abraçada, sentia-se beijada, como se as letras tivessem braços, como se as letras tivessem boca. Por vezes, o Severo, reparando no rosto dela, na forma como ocasionalmente desenhava um sorriso ou limpava uma lágrima com o dedo, pedia-lhe que partilhasse com ele os versículos que lia e a São, sem se atrapalhar, citava de cor uma frase qualquer, das que ouvia repetidas vezes na missa, os olhos são a candeia do corpo, se os seus olhos forem bons, todo o seu corpo será cheio de luz, e o Severo, ao ouvi-la, estalava a língua em sinal de aprovação, pedia mais, a São fingia voltar a página, quando simplesmente fechava a novela, para conseguir aceder ao texto bíblico e ler um trecho, é isso, minha filha, é isso mesmo, dizia ele enquanto se benzia. As descrições dessas novelas e romances, quando se centravam num cenário faustoso ou exótico, recordavam-lhe o Moisés. Ninguém acredita em ti, murmurava baixinho quando se lembrava dele. Sempre que tentava evocar o seu rosto, dizia: tapa-me com os teus olhos fechados. Que seria feito dele?

Os leitores são a força e a vida do jornal

O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.
Sugerir correcção
Ler 2 comentários