Levar a sério o delírio da Web Summit

Melhor do que criticar o capitalismo é combatê-lo no terreno do desejo, apontando caminhos atrativos que passam pela intensificação dos laços com os outros e com a natureza.

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Na Web Summit deste ano, dois ativistas sociais, disfarçados de executivo da Adidas e de DJ Marshmello, realizaram uma “sessão sobre a democratização da riqueza através de um novo tipo de cripto”. Anunciaram a criação de uma criptomoeda, a AdiCoin, para recompensar os seus trabalhadores. Implantados com um microchip, os trabalhadores teriam acesso ao AdiVerso, universo virtual onde viveriam o que não podem viver no mundo real com os salários que recebem. Mais de mil assistentes aplaudiram, acreditaram e, porventura, aprovaram.

O corpo é que paga. Mas o corpo de quem?

Na Condição Humana, Hannah Arendt sublinhou que os seres humanos sempre desejaram escapar à sua condição, sempre se rebelaram contra a condição terrestre, que é a de ter um corpo e viver na Terra. Escapar ao trabalho imposto pelas necessidades do corpo foi o que sempre fizeram as elites, entregando os filhos a amas e contratando empregadas de limpeza, para se dedicar a profissões intelectuais.

Não nos esqueçamos da lição existencial da covid-19. São “trabalhadores essenciais” os que desempenham as tarefas físicas, penosas: cuidadores de idosos, limpeza dos hospitais, estafetas, trabalhadores agrícolas. A recusa desse trabalho por parte dos europeus leva à criação de redes de tráfico humano, trabalhadores migrantes a viver em condições desumanas.

Poder-se-ia então oferecer a esses trabalhadores, como aos da suposta Adidas, um mundo virtual, um metaverso. Mas o seu corpo, contrariamente ao dos teletrabalhadores, teria de continuar a desempenhar as tarefas necessárias às sociedades humanas. A solução tem de ser outra: devemos todos ser obrigados a enfrentar a nossa condição; é isso que nos protege do delírio, disse Simone Weil. Deve-se aumentar o salário destes trabalhadores, prestigiá-los socialmente, dignificá-los; os serviços que prestam têm de ser mais caros.

Pensar que é possível escapar às necessidades do corpo tem como outra face pensar que é possível escapar à nossa dependência da Terra, à finitude dos seus recursos. Outro delírio; na realidade, o delírio é o mesmo.

Distopias digitais

Hannah Arendt também via na automação um fenómeno ameaçador, para o mundo do trabalho, em particular. As tecnologias digitais gerem os trabalhadores como se fossem máquinas – nos armazéns da Amazon, por exemplo.

O teletrabalho contém dois riscos existenciais: o da ilusão de uma vida desmaterializada e o da fuga ao confronto com o outro. Em muitos aspectos, o digital elimina a presença do corpo do outro. “A presença é a única deusa que adoro” disse Goethe em seu tempo. Os seres humanos definem-se e amadurecem relacionando-se uns com os outros, estabelecendo relações afetivamente conotadas.

Resultamos tanto do exercício da nossa razão como da experiência das nossas emoções. E, não o esqueçamos, emoções e sentimentos estão associados às vivências do corpo, como relembram os relatórios sobre saúde mental dos jovens, que dizem ser necessário desenvolver as suas competências emocionais. José Tolentino Mendonça advertiu: “Uma das crises mais graves da nossa época é a separação entre conhecimento e amor”.

A digitalização pode ter efeitos massivamente disruptivos na coesão social. Neste contexto, como não se indignar com a adesão acrítica às tecnologias digitais, fáceis de financiar e adotar, quando se protelam as políticas ecológicas, complexas e amiúde indesejadas mas imperativas?

A utopia de sempre

As sociedades ocidentais têm modos de vida insustentáveis; a produção e o consumo têm de voltar a ser compatíveis com os recursos do planeta. A esfera política tem hoje uma função gigantesca: a de moderar os desejos humanos, para conter a economia dentro dos limites planetários. A ascensão dos populismos, todos climatico-céticos, mostra que as sociedades tendem a recusar o conhecimento científico e o facto de as atividades humanas estarem a destruir os ecossistemas.

Em vez de alimentar a expectativa de termos todos um poder de compra que aumente indefinidamente, governos e partidos têm de colocar as questões ecológicas na sua comunicação. Só assim se influenciará o voto e os comportamentos.

Para que o nosso mundo não colapse sobre si próprio, importa tornar mais tangíveis as vantagens de um mundo mais sustentável, promovendo valores outros que a riqueza monetária. Melhor do que criticar o capitalismo é combatê-lo no terreno do desejo, apontando caminhos atrativos. Esses caminhos passam pela intensificação dos laços sociais e pelo restabelecimento dos laços com a natureza. As vantagens de ter um corpo, ter emoções, e viver na Terra.

Não haverá transição ecológica sem mobilização dos corações. Será que os leitores acham embaraçoso falar-se de amor mas não sentem desconforto quando se fala de ódio? Ou de metaversos?

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