Homens e a beleza de matar mulheres

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Assina-se a 25 de novembro o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Contra as Mulheres. No seu enlace, algumas reflexões:

1. Narrativas

Há uma tradição narrativa que coloca a existência da mulher intrinsecamente ligada a uma teodiceia.

Na mitologia grega, Gaia (Terra) levou o seu filho Zeus a trair o pai, Úrano (Céu), para que o primeiro pudesse reinar. Pese embora Gaia não seja, como personagem, antagonista, ela protagoniza, na Teogonia de Hesíodo, o feminino que, por mais de uma vez, conspirou contra Úrano – metáfora da força.

Exemplo claro da sacralização da força masculina é o de Zeus, que ordenou a criação de Pandora para castigar a humanidade. Pandora, a primeira mulher a ser criada, é a representação da mulher como princípio do mal, símbolo do ardil.

Também na matriz judaico-cristã encontramos na figura de Eva uma narração da mulher como a origem da tentação, da punição, do pecado. Assim retratada ao longo de milénios, a mulher tem sido o maior álibi para a violência, ainda que esta seja muito mais sobre o género feminino, e pelo género masculino, do que de género feminino.

2. Genética humana

A condição humana não é só com uma questão de genética, de cromossoma Xe Y que justifica um "pré" domínio da força.

O argumento de que os homens são, por resultado da sua constituição física, mais fortes do que as mulheres, logo, predestinados a dominar, só seria perfeito se os homens tivessem útero. Se tudo se baseasse na lógica da constituição, o sexo com mais força seria o mais apto para transportar mais peso durante nove meses. Não o é. Se tudo fosse uma questão de resistência física os homens viveriam mais do que as mulheres. Não acontece. Eliminar o darwinismo obriga a eliminar "homo macho" em que se tornou o Homo sapiens.

3. Criminalização

Matar mulheres é das tradições mais perpetuadas pelos homens e, no entanto, o feminicídio continua sem legislação na maioria dos países, nomeadamente Portugal.

Diana Russell, escritora e feminista nascida na Cidade do Cabo, foi quem deu o passo para a conceção jurídica de um crime ocultado de forma reiterada e perpetuado de forma sistémica: o assassinato de mulheres. Discursando em Viena, Diana Russell afirmou: “We must realize that a lot of homicide is in fact femicide. We must recognize the sexual politics of murder”.

4. Feminismo e paz

Não há outra forma de tratar a paz e a não violência que não seja pelo feminismo. Os tratados universais políticos para salvar a humanidade falharam, faltou-lhes "desmasculinizar" a sociedade, libertar o mundo do primeiro grande colonizador, que foi e continua a ser másculo; o homem é o ser que mais uso faz da violência, aquele que impõe o seu domínio sobre a natureza, os animais e, insistentemente, sobre as mulheres.

A beleza de matar mulheres tem uma longa herança na civilização patriarcal caracterizadora dos povos desenvolvidos. Arrisco-me na tese de que, se, porventura, Deus criou primeiro o homem, este último, assim que viu criada a mulher, matou-a.

5. Outras mulheres, múltiplas violências

No Brasil, Ana Hickmann, apresentadora de televisão e ex-modelo, torna o tema da violência no matrimónio viral. Depois de denunciada a agressão, em frente do filho menor, perpetuada pelo marido de que foi vítima, confirmada pelo próprio agressor que entretanto pediu desculpas públicas, surgem vozes que questionam se aquele terá sido, efetivamente, o primeiro ato de violência no matrimónio entre o casal ou se as postagens nas redes sociais com filmagens do dia-a-dia da apresentadora onde esta e o marido encenavam episódios de discórdia conjugal que terminavam sempre em reconciliação, não seriam já um grito de alerta silenciado. Nos episódios filmados era comum ouvir-se o marido a subir o tom de voz ou a argumentar sobre o penteado, a maquilhagem ou o vestido que Hickmann havia escolhido e que, segundo este, não a favoreciam.

Em Angola, província de Benguela, Lurdes Manico, de 19 anos, é encontrada morta. O agressor foi o padrasto, efetivo da Polícia Nacional de Angola, que a jovem acusava de maltratar a mãe. E era para proteção da mãe, que foi quem a encontrou debaixo da cama já morta, que se mantinha na casa coabitando com o padrasto, enfrentando discussões constantes e ameaças que se concretizaram com a sua violação, espancamento e assassinato, alegadamente reserve-se sempre a presunção de inocências dos homens que violam, espancam e matam pelo acusado.

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Em Portugal, não podia deixar de citar o episódio de violência policial sofrido pela cidadã Cláudia Simões e que o PÚBLICO tem vindo a acompanhar. Procurarei, num outro artigo, discorrer sobre ele num mais que previsível testemunho de indignação. Para já destacar aqui que no caso Cláudia Simões, bem como no caso Ana Hickmann, há outras vítimas, menores, que presenciaram a cena a quem nunca poderemos mesurar os efeitos da violência física presenciada e da psicológica sofrida, nem a forma como ela se refletirá daqui a décadas nas suas vidas adultas.

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Certo, certo é que, não se podendo afirmar que todos os homens, pelo simples facto de serem homens, matam, observa-se que a masculinidade antecipa a violência. Acabar com a violência é acabar com a masculinização das ações, com a masculinidade institucional e o falocentrismo civilizacional. Renegociar o modelo de organização política que queremos só tem uma via: o feminismo.

Se, como se prova, a violência contra as mulheres tem como base os homens, sendo que o contrário não se verifica, isto é, as mulheres não são a base da violência contra os homens, antes sim eles mesmos, então contemos outra História, a estória d’ “As Mulheres de Troia”.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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