Orgulho e preconceito no futebol

Algo se passa. E mais uma vez o desporto é o melhor palco do teatro das nossas representações – dos nossos sucessos, dos nossos preconceitos. E do orgulho de cada um.

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Já todos conhecem a obra de Jane Austen Orgulho e Preconceito. O enredo passa-se num momento muito próprio da história económica, na qual o capital fundiário (as terras) perde brilho perante o capital fungível (o dinheiro em contas). As classes sociais com o seu capital social preso ao capital fundiário vão perdendo centralidade na sociedade, a favor das outras classes sociais ligadas ao capital financeiro. Portanto, a aristocracia via a ascensão social da burguesia industrial.

Como reage a aristocracia, com problemas crescentes de liquidez (de transformar em dinheiro o seu capital)? Amua, diz mal da burguesia, despreza a burguesia. De qualquer modo, aquele episódio – o contágio social derivado da valorização diferenciada da base do capital detido – tem-se repetido, mais ou menos percetivamente. Dimensões de capital social, como o prestígio ou a reputação, andam a par de outros capitais, como o financeiro, o político ou o imobiliário. Ultimamente, o futebol profissional também assistiu a essa evidência.

O futebol da península arábica “assaltou” o futebol do Velho Continente. Nos últimos meses, muitos profissionais – desde os mais mediáticos (os jogadores e técnicos) até os menos mediáticos (preparadores físicos, “olheiros” e managers) receberam propostas milionárias para trabalhar nos campeonatos profissionais da Arábia, do Qatar ou do Kuwait. Se, por um lado, estas paragens não eram desconhecidas de muitos profissionais, inclusive portugueses, por outra via, o movimento focado nos últimos meses, a mediatização dos contratos e, sobretudo, o valor negociado (que alguns identificam como “especulação”) levaram a discussão a atingir dimensões curiosas.

Como naqueles anos daquelas fases emergentes da Revolução Industrial, a “velha aristocracia” amua, diz mal dos novos-ricos, desprestigia-os. Os campeonatos árabes não têm a qualidade dos europeus. As equipas desses campeonatos não têm a competitividade das equipas europeias. Ninguém quer saber dos campeonatos árabes. Quem não ouviu estes comentários por estes dias? Aliás, quem não concorda com eles? Mesmo que Cristiano Ronaldo alegue o contrário.

No entanto, para mim, o problema é mais profundo. Há 200 anos, a espetacularidade dos ganhos de produtividade da inovação tecnológica alimentava a ascensão de uma burguesia que muito contribuiu para os nossos conceitos de democracia parlamentar e para a valorização da criatividade e da liberdade que consideramos pilares da nossa vida. Mas também tínhamos moles imensas de seres humanos silenciados nos amuos entre os ricos decadentes e os jovens fulgentes. Os direitos humanos eram retórica que só paulatinamente e com fricções de vária ordem foram reconhecidos. A arte balouçava entre o realismo denunciante e o romantismo idealista.

É verdade que para se ser rico não é necessário parecer (aliás, leiam Séneca e qualquer estoico, sobre este assunto). É verdade que o valor é subjetivo e o preço é um dado objetivo. A riqueza das nações não é só a soma do dinheiro retido (aliás, o chamado “mal do mercantilismo”). Também a riqueza de um desporto não é só o dinheiro que ele tem, gere, consente, lava ou retém. Não basta um luxo para fazer um extravagante é outro cliché das nossas praças.

Mas algo se passa. E mais uma vez o desporto é o melhor palco do teatro das nossas representações – dos nossos sucessos, dos nossos preconceitos. E do orgulho de cada um.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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