O sistema de Isaltino

O jogo é permitir construção amanhã onde ontem não se podia, e as tais casas de habitação pública que, entretanto, forem construídas darão aos distraídos a sensação de que tudo acabou bem. Só que não.

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Isaltino Morais tem-se esforçado por parecer (e muitos acreditam) estar a defender os mais pobres e a classe média ao defender a desafetação de terrenos de Reserva Agrícola Nacional (RAN) para a construção de habitação pública. Mas é importante perceber, na verdade, o que está a ser proposto, e se no concreto as suas políticas contribuem efetivamente para a redução dos preços das rendas e dos imóveis, que boa parte da população não consegue pagar.

O autarca de Oeiras coloca a câmara municipal como um dos "players" do jogo da especulação ao vender terrenos municipais no mercado – veja-se o polémico caso dos terrenos do Espargal ou o da antiga Companhia Nacional de Petroquímica – para a construção de empreendimentos para os segmentos alto e de luxo, em vez de aproveitar esses terrenos para a construção de habitação para as classes média e baixa.

Quando se detém terrenos municipais em zonas consideradas nobres e se aliena propositadamente esse património está-se a contribuir para rarear os terrenos, que se diz “não existirem”, para edificação de habitação pública.

Depois, é essencial perceber toda a lógica de apropriação das mais-valias urbanísticas de quem comprou terrenos rústicos em Reserva Agrícola Nacional (RAN) ou Reserva Ecológica Nacional (REN) com expectativas de vir a poder edificar. Uma estratégia conhecida que continua a ser frequente em Oeiras, sob a batuta de Isaltino Morais.

É o caso dos famosos terrenos considerados Estrutura Verde Metropolitana no Plano Regional de Ordenamento do Território da Área Metropolitana de Lisboa (PROTAML) em vigor, em RAN e REN, que já todos pagámos, enquanto contribuintes, comprados por Duarte Lima (através do filho), em 2008, com um chorudo empréstimo de mais de 40 milhões de euros do Banco Português de Negócios, o BPN, tendo em vista vir a ser permitida edificação, o que não aconteceu. Acabaram por ficar nas mãos da Parvalorem, que depois os vendeu. A Câmara Municipal de Oeiras poderia tê-los comprado por uma pechincha, para a criação, por exemplo, de um grande parque agrícola para produção de proximidade, envolvendo empresas e cooperativas do setor, e dinamizando a economia de base local e social, mas preferiu declinar o direito de preferência para que o Imamat Ismaili (Fundação Aga Khan) os adquirisse, mais uma vez com a perspetiva de os vir a urbanizar.

Terrenos onde não se pode nem deve construir, adquiridos pelo Imamat Ismaili por apenas 4 milhões de euros, precisamente por não terem capacidade construtiva. Mas, para Isaltino Morais, os instrumentos de gestão do território, o PROTAML e o Plano Diretor Municipal (PDM) podem sempre ser contornados em nome do dito "interesse público", que, na verdade, não é mais do que o da “sacrossanta” especulação.

Isaltino Morais está hoje transformado no verdadeiro “sistema”. Já conseguiu aprovar, com a sua maioria absoluta (alargada ao PS e ao PSD locais) na Câmara e Assembleia Municipal de Oeiras, o interesse municipal deste projeto da Academia Aga Khan Lisboa, um projeto que diz ainda não ter visto – e que não foi devidamente apresentado aos órgãos autárquicos – mas para o qual quer agora que o Governo decrete o conveniente Interesse Nacional.

Só quem anda muito distraído e não conhece este modus operandi é que não vê o que se está a passar. Há muito dinheiro em jogo e o jogo é simplesmente permitir construção amanhã onde ontem não se podia, e as tais casas de habitação pública que, entretanto, forem construídas darão aos distraídos a sensação de que afinal tudo acabou bem. Só que não.

Se o Governo vier a facilitar, como tem sido pedido insistentemente por Isaltino Morais, em diversos órgãos de comunicação social, a construção em áreas de RAN e a destruição de solos agrícolas, está a prestar um péssimo serviço ao país e às gerações futuras e, utilizando uma expressão do próprio Isaltino Morais, estará a desbaratar a maioria absoluta.

Tem sido demonstrado por especialistas que a chamada crise da habitação é sobretudo um problema de inflacionamento dos preços por via da especulação, colocando o mercado imobiliário nacional como um foco dos investidores internacionais que procuram altos rendimentos que não conseguem no mercado bancário. O que se está a fazer é continuar no mesmo caminho, agravando o problema em vez de criar instrumentos para o resolver.

Resolver a crise de habitação terá de passar por um agravamento fiscal aos residentes não habituais, nómadas digitais e fundos imobiliários, pelo investimento na habitação pública (construção em locais apropriados e, sobretudo, requalificação de imóveis devolutos do Estado), mas também por incentivos económicos e fiscais para o arrendamento acessível, bolsa de habitação pública em todas as novas construções, e medidas de apoio ao setor cooperativo.

Ainda mais especulação, com o pretexto de resolver a crise da habitação, não obrigada!

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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