As pessoas invisíveis que olhamos, mas não vemos

Esta invisibilidade social abarca não só a condição financeira, mas também a cor, o género, a raça e, estranhamente ainda hoje, a profissão. O que fazemos não é o que somos.

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Todos os dias serpenteia as mesas do escritório e os pequenos habitáculos onde quase ninguém levanta o olhar do monitor e mesmo quando o faz permanece online com o outro lado do mundo, mas imune a quem está mesmo ali, a um centímetro de se tocarem, de se sorrirem. Eles mantêm-se silenciosos e encolhidos, como se a sua presença fosse um incómodo no foco das coisas que julgamos importantíssimas, tão relevantes e soberbamente superiores. São as pessoas invisíveis que olhamos, mas não vemos.

Ontem entrei num Uber, com um telemóvel no ouvido e outro na mão, várias mensagens por responder e uma sofreguidão para me pôr a par. Dois envios, três emails, uns gostos sem sentir, imagens, outras imagens, mais uma mensagem de grupo e rejeito uma chamada. O carro avança sem perguntas, sabe o destino, quando vamos chegar, onde pára o trânsito, tudo numa aplicação onde a proximidade não se aplica. É um nome sem bom dia.

Há uma paragem brusca, não sei se propositada ou se necessária. Olho pela primeira vez para Hari, com o seu turbante turquesa e os olhos âmbar, fixos no espelho retrovisor. Sinto-lhe o estado de alerta, à defesa. Talvez aguardasse um ralhete pela travagem, mas na minha cabeça povoam outras questões: que caminho percorreu até aqui chegar? Saio daquele carro tão pobre quanto entrei, sem nenhuma resposta porque nem sequer tentei perguntar.

Ser invisível é cada vez mais uma condição. Trabalhadores que executam tarefas imprescindíveis à sociedade moderna são muitas vezes vistos como “elementos” e não como pessoas. Esta invisibilidade social abarca não só a condição financeira, mas também a cor, o género, a raça e, estranhamente ainda hoje, a profissão. O que fazemos não é o que somos.

A integridade e dignidade não se mede pelo número de páginas do CV e muito menos pelo obsoleto título académico. Mais do que a valorização do trabalho, o que se espera é o respeito e a consideração pela pessoa que o realiza, seja ele qual for.

Na mesma ordem de ideias, observo com espanto uma sociedade marcadamente estratificada, em que uma espécie de clã continua a ocupar os papéis de relevância, como chefes da “aldeia”, os mais fortes da matilha e que por conta disso determinam o lugar dos outros, as suas funções, o que podem ascender, onde se devem colocar, reduzindo-os ao papel de seus serventes, sem levantar grandes questões. Contribuir para essa “ordem natural” faz-nos coniventes de princípios que não comungamos, muitas vezes apenas por falta de tempo, por falta de tacto.

Mas voltemos às pessoas a sério. Sabes a cor dos olhos de quem faz a limpeza no teu prédio, no escritório onde trabalhas, no teu ginásio? Eu sei. São de um azul tão profundo e cristalino que é impossível não notar a sua presença. Mais do que tudo comungamos respeito. Mútuo, sem regras. São olhos de verdade que me trazem as melhores histórias e as gargalhadas mais sonoras, tão boas e sinceras que acompanho ao mesmo ritmo, porque ali a música que toca é igual para todos.

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