A transformação

Senti vontade de chorar ao ver em mim uns medonhos braços humanos, membros aos quais dirigi durante toda a minha existência um profundo e justificado ódio. A partir d‘A Metamorfose de Kafka.

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Megafone P3: A Transformação Jesper Aggergaard/ Unsplash

Certa manhã, ao acordar de sonhos inquietos, vi-me transformado numa pessoa. Estava deitado debaixo de um canapé, enredado naquilo que me parecia cotão e pó, quando avistei as minhas pernas nuas que, para meu espanto e horror (!), terminavam nuns hediondos pés humanos.

— Mas o que é que se passa comigo? — pensei — O que terá acontecido às minhas patas? Às minhas antenas?

Apesar da minha vontade de permanecer imóvel, arrisquei olhar para o lado, deparando-me com um novo membro superior de carne, músculo e osso, cujo par idêntico, pude verificar ao espreitar para o lado contrário, se encontrava preso ao meu corpo. Senti vontade de chorar ao ver em mim uns medonhos braços humanos, membros aos quais dirigi durante toda a minha existência um profundo e justificado ódio. Braços e pernas, mãos e pés, como os da raça que sempre se esforçou por exterminar a minha; membros cúmplices no crime dos meus ascendentes.

Rebolei-me sem esforço para sair de baixo do canapé, movimento que não seria possível com o meu corpo antigo, e encarei um cenário calamitoso. Tirando o canapé, nada restava da divisão, nem mesmo as paredes ou o tecto que, durante muito tempo, eu e a minha família de insectos habitámos e percorremos incontáveis vezes, no breu da noite, em todas as direcções possíveis.

Sentei-me facilmente (!) e reparei mesmo abaixo da minha pequena barriga humana (argh, nojo absoluto) num outro membro, parecido com os superiores mas mais curto e maneta, e igualmente inquietante. Contudo, este não reagia às ordens de movimento do meu cérebro. O meu desassossego era tanto, com tudo o que me acontecera, que rapidamente perdi o receio e interesse numa coisa que me parecera não ter utilidade.

— Onde estará a minha família? — olhei para o chão, primeiro em torno do canapé, depois dirigindo o olhar ao descampado a perder de vista, nenhuma outra casa nem vegetação, nenhum automóvel, pessoa ou outro bicho, nada. Zero sinais de civilização. Tudo à minha volta, e até onde a minha visão alcançava, não passava de um ermo árido. Foi então que me apercebi da presença da minha família. A alguns metros de distância – mãe, pai e irmã.

Observavam-me de antenas em riste e com uma expressão apavorada. Aproximaram-se lentamente, o meu pai à frente, aviltado e culpando-me certamente pelo sucedido (conheço bem o seu sangue de barata, desde a infância, sem remorsos por me castigar, ainda que injustamente), a minha mãe e irmã avançavam escondidas atrás da sua carapaça, atemorizadas pelas circunstâncias.

Aproximaram-se o suficiente para ouvir o silvo autoritário do meu pai, embora me fosse incompreensível. Tentei silvar de volta, mas o que me saiu foi o mais próximo da onomatopeia humana para "caluda!". Vi as antenas do meu pai enrijecerem de ódio, como se eu tivesse pecado por me ter transformado numa pessoa. Senti-me culpado, é certo. Desde sempre que os decepciono.

Nunca me soube alimentar em condições, tenho pouco faro para escolher os alimentos em estado de maior putrefacção, e graças a essa inabilidade adoeci muitas vezes. Alimentava-me com o que calhasse, emagrecia e dava ralações à minha família. Abdicaram de alimentos putrefactos, que lhes davam tanto trabalho a farejar, só para me vitaminarem o corpo e para me verem recomposto.

O meu pai tornou a silvar, zangado, mas não sei o que me dizia. Devo ter feito uma expressão de aflição e a minha pobre mãe, conhecendo melhor do que ninguém as minhas expressões que até num rosto humano as identifica, saiu detrás do meu pai e avançou na minha direcção até estancar, corajosa, junto aos meus pés enormes. Olhou-me com afecto e silvou algo doce mas ininteligível. Também a minha pequena irmã chegou mais perto e reconheci-lhe o sorriso de antenas.

De súbito, vi surgirem em meu redor, vindos de pequenos buracos no chão, dezenas de insectos da minha espécie. Dezenas não, centenas. Em alguns minutos talvez fossem milhares, e cobriram todo o chão com um uniforme castanho-escuro. A miríade consanguínea ao meu redor produziu então uma amplitude de silvos nunca antes vista na História. Comecei a sentir-me verdadeiramente mal. Primeiro do corpo, depois do espírito.

O estômago agitava-se e a mente despertava-me um sentimento de asco perante o espectáculo que noutros tempos teria achado absolutamente aprazível. O som que emitiam em conjunto, o agitar das antenas, as patas, tudo, tudo, naquelas criaturas, à excepção dos meus pais e irmã, me enojava. Quanto mais silvavam, maior a minha vontade de vomitar.

— Mas por que raio me transformei num homem? — pensei, à beira de um desmaio.

A minha pobre mãe, pressentindo ou vendo o meu estado de alma, trepou para o meu pé direito e eu não pude conter o instinto de o sacudir, fazendo-a voar para longe. O meu pai começou, com extrema dificuldade, a tentar furar a multidão de insectos à sua procura.

— Minha querida mãe, perdoe-me! — gritei bem alto. Mas deixei de a ver no meio de tantos insectos iguais a ela. Deixei também de ouvir a miríade de silvos, portanto calculo que tenha desfalecido por breves momentos.

Quando tornei a acordar, encontrava-me novamente deitado, sentindo-me moribundo. Virei apenas o rosto e vi, a partir do chão, como os da minha espécie se movimentavam por todo o espaço, organizados como uma verdadeira civilização. A minha pequena irmã, junto ao meu rosto, manifestava um claro receio de mim. A pequenina silvou então, cheia de medo, baixinho:

— Depois da guerra, somos os únicos sobreviventes, os da nossa espécie.

Não sei como a pude entender, mas a verdade é que foi sempre a única que escutei na família, quando eu ainda era um deles. Definhei um pouco mais – o grande desejo dos da minha raça tinha-se tornado realidade. E eu sofrera do mais incompreensível e detestável dos azares, tinha-me tornado, na nova era dos insectos, um ser humano. Não contive a revolta e o instinto de nojo, e acabei por esmagar a minha irmã com um punho.

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