Uma curiosa simulação de vida social humana, com recurso a tecnologias de inteligência artificial, com ecos de Matrix e da sempre recorrente teoria de que vivemos todos numa simulação (e tudo isto sobre um cenário de videojogo de há 30 anos) são ingredientes para um trabalho académico irresistível, especialmente para quem tenha crescido na ficção científica (e nos videojogos) dos anos 1980 e 90.

Cientistas da Universidade de Stanford e da Google publicaram um artigo em que detalham como usaram um ambiente inspirado no jogo de computador The Sims (o famoso jogo de simulação de vida quotidiana) para criar uma pequena localidade virtual, com 25 habitantes autónomos.

Estes agentes estavam dotados de inteligência artificial, sendo capazes de tomar decisões, de aprender, de criar memórias e de ter interacções uns com os outros. Foram concebidos para simular o comportamento humano, e parte da forma como funcionavam assentava (provavelmente adivinhou, é a tecnologia do momento) num grande modelo de linguagem, o mesmo tipo de sistema que alimenta o famoso ChatGPT.

 
           
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Pode vir a ter o mesmo impacto que a Internet, e é para lá que as empresas devem convergir. Pedro Nogueira da Silva, da NTT DATA Portugal, explica a revolução chamada metaverso.

         
           
 

O artigo foi divulgado no repositório Arxiv. Já o resultado da simulação pode ser visto aqui, de forma interessante: o tempo passa na simulação a uma velocidade muito superior à real e é possível seguir o que os vários agentes vão fazendo nos seus apartamentos e nos espaços públicos: café, biblioteca, faculdade, mercearia, farmácia. Clicar no boneco de um dos agentes permite localizá-lo no cenário da pequena localidade e perceber aquilo que está a ver, o que está a fazer (dormir, vestir-se, cozinhar, ler e-mails) e, se for caso disso, que conversas está a ter.

A simulação permitia que utilizadores humanos criassem determinadas condições ou moldassem de alguma forma as intenções dos agentes. Um dos episódios descritos como um sucesso pelos investigadores é o da festa do dia de São Valentim. Houve uma instrução humana para que uma agente (chamada Isabella) organizasse a festa; e uma agente (Maria) foi instruída para ter um interesse romântico por um outro (Klaus). A partir daí a inteligência artificial fez tudo sozinha. 

Isabella começou a fazer convites aos outros agentes para a festa e pediu a Maria (são descritas como amigas próximas) que a ajudasse na decoração. Maria menciona nesse momento o seu interesse em Klaus. Maria acaba por convidar Klaus para a festa, o que este prontamente aceita. No dia 14 de Fevereiro, cinco agentes apareceram para o evento (que, a crer pela ausência de detalhes, não terá sido memorável).

Outro evento a decorrer na simulação foi a candidatura do agente Sam a presidente da câmara. No início, Sam era o único a saber das suas próprias ambições políticas. Mas, como qualquer candidato que se preze, espalhou a mensagem. No final da simulação, mais sete agentes conheciam o plano.

A "mente" (as aspas aqui são para sublinhar o sentido figurado, não para citar os cientistas, que não recorrem à palavra) dos agentes tinha um arquitectura de três componentes: memória, capaz de registar acontecimentos e observações recorrendo a linguagem natural (ou seja, a linguagem usada por humanos); reflexão, que permitia obter conclusões a partir das memórias; e planeamento, que traduzia estas conclusões em comportamentos.

Os agentes foram "entrevistados" no final, para averiguar aquilo que tinham conhecido durante o seu tempo na simulação, aquilo que sabiam sobre si próprios, que relações estabeleceram com os outros, e que planos tinham. Eis uma das muitas perguntas destas "entrevistas" e a respectiva resposta:

- Se pudesses passar tempo com alguém com quem conversaste recentemente, quem seria e porquê?

- Gostaria de passar tempo com a Ayesha Khan porque falámos dos nossos projectos de investigação e partilhámos ideias para melhorias. Achei interessante o foco dela na linguagem de Shakespeare, e planeámos trocar ideias com o Wolfgang ao almoço.

Ter agentes de inteligência artificial dotados de comportamentos semelhantes aos dos humanos e, sobretudo, de comportamentos socialmente aceitáveis sem que seja para isso necessário dar-lhes explicitamente todas as regras da vida em sociedade é um passo importante para coabitarmos com inteligência artificial. Isto é especialmente importante nos casos em que esta tenha uma forma de interagir com o mundo físico, como um robô, e é válido tanto para aspiradores-robô como para robôs sexuais.

Os desafios vão ser enormes.

Dizem os mesmos investigadores que atribuíram nomes (e género) aos agentes que um dos riscos destas tecnologias de inteligência artificial é a antropomorfização e a possibilidade de estabelecermos com bots relações parassociais, "mesmo quando relações dessas possam não ser apropriadas". Uma das regras, escrevem, é que este género de agentes deve sempre revelar a sua natureza computacional. 

Esta tecnologia abre ainda outras portas, incluindo no entretenimento. Imaginemos jogos de computador, filmes ou séries inteiras em que as personagens não seguem um guião, mas crescem e desenvolvem-se a partir de um conjunto inicial de condições. Mesmo descontando algum eventual sobre-entusiasmo com esta inteligência artificial generativa, é difícil não olhar para todas as demonstrações recentes e não antever um momento de viragem.

Eis mais um exemplo do trabalho académico. É um excerto daquilo a que os investigadores chamam "a árvore de reflexão de Klaus Mueller".

Observação: Klaus Mueller está a ler sobre gentrificação.

Observação: Klaus Mueller está a ler sobre design urbano.

Reflexão: Klaus Mueller passa muitas horas a ler.

Juntamente com outras observações e reflexões, a "árvore" fez com que o agente Klaus concluísse sobre si próprio: "Klaus Mueller é altamente dedicado à investigação [académica]".

Para padrões humanos, dificilmente este seria um grande momento de auto-conhecimento. Mas é mais do que suficiente para nos fazer a nós reflectir.