Doença renal diabética: progressão poderá custar mais 17 mil milhões de euros

A evolução da doença renal diabética poderá custar mais 17 mil milhões de euros e 410 mil anos de vida saudável aos doentes. Dados de um estudo recente mostram bem a dimensão do problema em Portugal.

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Ricardo Gaudencio

Aquilo que já era uma forte suspeita entre todos os que diariamente tratam de pessoas com doença renal crónica associada a diabetes surge agora quantificado e reforçado por evidência científica: em Portugal, as pessoas que sofrem deste problema de saúde consumirão ao longo da vida mais de 17 mil milhões de euros em recursos de saúde, ao mesmo tempo que perderão mais de 410 mil anos de vida saudável por incapacidade. Ou seja, quando comparadas com doentes ainda numa fase inicial da doença, as pessoas com doença renal diabética que se encontram no estadio de alto risco vêem a sua esperança média de vida reduzir em 34%, os seus anos de vida com incapacidade duplicar e os custos totais com a doença aumentar em cerca de 81%.

Os resultados constam do estudo “Evolução natural da doença renal crónica em pessoas com diabetes: custos e consequências na realidade portuguesa”, coordenado pela médica Margarida Borges e levado a cabo pela IQVIA Portugal e pelo Centro de Estudos de Medicina Baseada na Evidência, tendo contado com o apoio da Bayer e com a colaboração de diversos peritos e entidades nacionais. Apresentados em Coimbra no dia 9 de Março, data em que se assinalou o Dia Mundial do Rim, os dados vêm finalmente colmatar uma lacuna, já que até à data se desconhecia o verdadeiro impacto social e económico, no nosso país, da associação entre as duas patologias.

Presente na abertura da reunião, organizada pela Sociedade Portuguesa de Nefrologia (SPN), Sofia André, Market Access & Public Affairs Head da Bayer, justificou o apoio da farmacêutica à realização do estudo com a “expectativa de que o futuro possa ser mais promissor para os doentes e que esta peça de informação importante possa de facto influenciar políticas de saúde com vista a evitar o impacto deste flagelo”.

Doença silenciosa

Sabe-se que Portugal é o quarto país da Europa com mais casos de diabetes e também o nono país do mundo e o terceiro país europeu quanto à prevalência de pessoas com doença renal terminal. Sendo que a diabetes é considerada uma das principais causas desta patologia, os dados agora obtidos vêm dar corpo ao que já era expectável, como realça em entrevista Edgar Almeida, presidente da SPN: “Este tipo de análise nunca tinha sido feito anteriormente no nosso país e, como tal, ficamos conscientes do elevado impacto económico da doença.” Além disso, salienta a necessidade de sensibilizar os profissionais de saúde para o problema, pois “a doença renal crónica é silenciosa e só aparece nas análises, mas quem tem a obrigação de identificar as pessoas, olhar para os resultados das análises e tomar decisões são os médicos”.

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De acordo com o especialista, “há uma realidade que é inquestionável, que se prende com o facto de o número de pessoas que inicia diálise [tratamento que permite a substituição de algumas das funções renais mais importantes] em Portugal ser dos mais elevados da Europa e do mundo”. Nas suas palavras, “temos dados muito consistentes, há quase vinte anos, que mostram um aumento consecutivo do número de pessoas a fazer tratamento de diálise, das quais 30 a 40% são pessoas com diabetes”, explica. Como tal, fica clara a necessidade de intervir junto destas pessoas para evitar que cheguem às fases mais graves da doença renal crónica.

Apostar na prevenção e detecção

Quem também não ficou surpreendido com os resultados do estudo foi João Raposo, presidente da Sociedade Portuguesa de Diabetologia e director clínico da Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal. “Esta evolução infelizmente não é uma surpresa para nós”, afirma, justificando com os dados de prevalência disponíveis. “Calculamos uma taxa de 14 % da população adulta em Portugal com diabetes em 2021, o que significa que, se não tomarmos medidas de tratamento adequadas, uma das complicações frequentes é a doença renal”, destaca.

Para combater a tendência, defende que “temos de apostar mais naquilo que dizemos que gostamos de fazer, que é a prevenção”, tanto mais que a diabetes é uma das principais causas deste problema. Além da necessidade de envolver as pessoas, apelando à sua “responsabilidade individual”, o médico considera também que a sociedade como um todo deve ser chamada a actuar para “mudar o nosso ambiente, que é nesta altura favorável ao excesso de peso, à obesidade e às doenças cardiovasculares”. Por outro lado, entende que “precisamos de uma organização dos cuidados de saúde que permita identificar estas pessoas mais cedo, porque o tratamento da diabetes é sempre muito mais simples nesta fase inicial, e porque podemos prevenir a evolução para a doença renal e para as outras complicações da diabetes”.

Em relação a medidas concretas a adoptar, o clínico frisa que as recomendações actualmente disponíveis já indicam o tipo de rastreio que deve ser feito, e que passa por uma análise ao sangue e à urina. Além disso, reforça a necessidade de se fazer o controlo da glicemia, da pressão arterial e dos níveis de colesterol, pois tudo isto “é importante para a evolução da doença renal”, mas “o que estes resultados mostram é que estas análises ainda não são pedidas a todas as pessoas com diabetes que estão identificadas no sistema, e, portanto, falhamos logo num passo inicial, que é na detecção destas situações”.

Plano de integração de cuidados

Presente na sessão esteve também Rui Portugal, subdirector-geral da Saúde, que perante os dados assumiu que tem “cada vez mais dificuldade em olhar para a valorização das prioridades relativamente a custos”, considerando que “vida e qualidade de vida valem mais do que as condições financeiras”. Nesse sentido, corroborou a necessidade de se apostar em medidas de prevenção e promoção, pois “são aquelas que têm múltiplos impactos relativamente à população”.​

Especificamente no que diz respeito à doença renal crónica, o responsável lembrou que a Direcção-Geral da Saúde tem vindo a trabalhar numa proposta de integração de cuidados, incluída no Plano Nacional de Segurança do Doente, que poderá constituir uma mais-valia. “Pensamos que poderá entrar em vigor e que tenha investimentos próprios, que seja uma ajuda relativamente a todo o percurso, desde a prevenção, às questões do tratamento e acesso às inovações”, explicou. À margem do encontro, Rui Portugal referiu que ainda não há data para a passagem do documento à prática, mas encara-o como “uma belíssima medida relativamente à apresentação dos dados deste estudo”, o qual lembrou que não conhece em profundidade e, como tal, mantém algumas reservas em relação ao mesmo.

Quanto à metodologia seguida, Margarida Borges explicou na ocasião que se trata de “uma metodologia bem estabelecida, desenvolvida pelo Banco Mundial e pelo Global Burden of Disease, assente num modelo matemático que, a partir dos pressupostos da população actual, prevê o que vai acontecer a estas pessoas ao longo do tempo”. A coordenadora da investigação reforçou que a principal inovação do estudo foi o facto de ter utilizado dados portugueses de vida real. Durante a apresentação das conclusões, afirmou que se constata que, em Portugal, “um eventual atraso na progressão da doença permitirá obter ganhos clínicos e diminuir custos de seguimento”.

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