Cuidadores informais fazem-se ouvir: não estão bem e precisam de ajuda

Tristeza, ansiedade, exaustão e necessidade de apoio psicológico. É esta a realidade dos cuidadores informais ouvidos num estudo, cujos resultados serviram de mote para um debate promovido pela Merck.

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Os dados falam por si e deixam bem à vista as dificuldades sentidas diariamente por quem dedica a vida a cuidar de alguém. Mais de 80% dos cuidadores informais reconhecem que já estiveram em exaustão emocional e quase 78% sentiram, em algum momento, necessidade de apoio psicológico. Porém, apenas 42% procuraram esse tipo de ajuda. Esta discrepância é especialmente preocupante se tivermos em conta que quase 80% acreditam que o seu estado de saúde emocional influencia o desempenho como cuidadores informais.

Os resultados foram obtidos através do estudo “Saúde mental e bem-estar nos cuidadores informais em Portugal”, uma iniciativa da Merck Portugal, com apoio do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais. Recorde-se que, já em 2021, num outro inquérito promovido pela mesma parceria, tínhamos ficado a saber que 52% dos cuidadores informais sentiam que não tinham suporte psicológico adequado, por parte do Estado e não só. Foi precisamente este indicador que motivou o aprofundamento da investigação agora levado a cabo, tal como explicou Pedro Moura, director-geral da Merck Portugal, durante a abertura da conferência “O presente e o futuro do cuidador informal”, realizada no dia 31 de Janeiro no auditório do PÚBLICO e com transmissão em directo no site e nas redes sociais do jornal.

De acordo com o responsável, cuidar dos cuidadores é uma preocupação que tem vindo a assumir “grande centralidade” na Merck, e foi nesse âmbito que a companhia apoiou, em 2020, a criação do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais, que hoje conta já com mais de 30 associações de doentes.

Tristes, nervosos e preocupados

Entre os números apresentados na sessão por Florbela Borges, managing director da Multidados, a empresa de estudos de mercado que operacionalizou o inquérito, destacam-se também os que reforçam como a maior parte dos cuidadores informais se vê numa situação de grande fragilidade e tristeza. Quase 80% afirmam que não têm vontade de rir como antes e 63,7% assumem que são poucas as vezes em que se sentem à vontade e descontraídos. Além disso, 48,3% dizem ter a cabeça cheia de preocupações e perto de 46% sentem-se muitas vezes tensos e nervosos.

Para Ana Carina Valente, psicóloga e responsável pelo Inquérito, “além de dar voz aos cuidadores, este estudo permite dizer que estas pessoas precisam mesmo de ajuda”. Entende que “sofrimento psicológico” é a expressão que melhor define como vivem os cuidadores informais em Portugal, lembrando que muitas destas pessoas “estão 24 sobre 24 horas a desempenhar este papel”. “Há que ouvir este grito, estas pessoas não estão bem e reconhecem que precisam de ajuda”, reforça a também docente do ISPA - Instituto Universitário de Ciências Psicológicas Sociais e da Vida, ressalvando, todavia, que “os cuidadores informais têm níveis baixos de saúde mental, mas isto não quer dizer que estejam doentes”. Em causa está, sim, exaustão, angústia, cansaço, e a pessoa que deixa de pensar em si, resume.

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Vidas suspensas

Infelizmente, o quadro traçado assenta na perfeição a Vanessa Leitão, cuidadora principal do filho de 3 anos de idade, portador de uma doença rara que exige múltiplos cuidados e atenção permanente. Durante a conferência, partilhou a angústia que sente pela falta de acompanhamento que constata no nosso país: “Vamos negligenciar o nosso papel enquanto cuidadores se não estivermos bem e é assim que me sinto há três anos.” Técnica auxiliar de farmácia, contou que teve de abandonar a profissão para ser cuidadora a tempo inteiro, e só recentemente conseguiu uma primeira consulta de psicologia para melhor lidar com a situação, por intermédio da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla (SPEM). “Acabamos por nos sentir anulados. É muito injusto, porque a felicidade acaba por nos escapar”, desabafa.

Quem acompanha inúmeras pessoas em situações idênticas é Liliana Gonçalves, presidente da direcção da Associação Nacional dos Cuidadores Informais (ANCI), razão por que diz não ter ficado surpreendida com os resultados. “Na sociedade em geral não temos investimento na saúde mental e não olhamos para o cuidar de quem cuida com esta vertente”, lamenta. Apesar de o Estatuto do Cuidador Informal (ECI) ter sido criado em 2019, a responsável sublinha que “o estatuto não vem resolver aquilo que é a realidade dos cuidadores informais”. “Cuidar tem um custo e é importante que isto seja assumido, tem um custo físico, financeiro, emocional, e temos vidas suspensas”, diz, salientando que “não temos apoio psicológico a chegar a cuidadores e não temos outro tipo de respostas, como seja o apoio domiciliário ou respostas de descanso do cuidador”.

A ajudar Vanessa Leitão a “desatar nós” há quase um ano está Palmira Martins, assistente social na SPEM, e coloca o acento tónico onde acha que este deve estar. “O Estado devia prestar o apoio que eu estou a prestar. Ela [Vanessa Leitão] tem direito a que o Estado se chegue à frente e a ajude a suprir estas necessidades”, afirma, acrescentando que Vanessa Leitão, à semelhança de tantos outros cuidadores, tem “uma situação financeira muito fragilizada”. Com efeito, o valor que esta recebe por lhe ter sido reconhecido o estatuto de cuidadora informal está muito longe de ser suficiente para cobrir as despesas diárias que tem com o filho, a que acresce o facto de não poder trabalhar. “Não chega sequer a um ordenado mínimo”, confirma Vanessa Leitão, defendendo que “o subsídio também devia manter-se para o cuidador não principal”.

Uma luta de todos

Ciente das dificuldades que existem, Susana Viana, directora da Unidade de Intervenção Social do Departamento de Desenvolvimento Social do Instituto da Segurança Social, lembra, ainda assim, que apoiar os cuidadores “não é uma luta só das instituições, é também uma luta do Estado”, e que o caminho está a ser feito para chegar mais longe. Segundo a responsável, o ECI prevê, entre outras coisas, que “para cada cuidador informal que vê o seu estatuto reconhecido existem dois profissionais de referência, um da saúde e outro da segurança social”, e isto porque se considera “muito importante garantir o apoio aos cuidadores e garantir o seu equilíbrio biopsicossocial”. Todavia, lembra que o ECI não se dirige a todos os cuidadores informais (1,4 milhões em Portugal, segundo dados do Movimento Cuidar dos Cuidadores Informais), mas apenas “a quem cuida de um familiar que está numa situação de grande dependência”, o que corresponderá, no máximo, a 14 mil cuidadores no nosso país.

De facto, segundo Liliana Gonçalves, neste momento apenas 11 500 cuidadores foram reconhecidos com o estatuto, mas muitos ficaram de fora, já que o universo de pedidos ascendeu a 23 mil. “Nós não podemos ignorar a fatia de cuidadores informais que está fora deste estatuto”, realça, advertindo para a necessidade de se ter “uma visão abrangente para estas pessoas”.

Também presente na sessão, Susana Eusébio, representante da Administração Central do Sistema de Saúde, onde integra uma equipa que monitoriza a implementação do ECI, refere que se está a tentar que os profissionais de saúde estendam agora o olhar ao cuidador, algo que “até agora não acontecia de forma sistemática e que visasse objectivos muito particulares. Assim, além da identificação de necessidades do cuidador informal, nomeadamente no que diz respeito à boa prestação de cuidados, há agora uma chamada de atenção para a sua própria saúde, física e psicológica. “A sua saúde mental é afectada pelo facto de haver problemáticas de saúde que não estão a ser devidamente acompanhadas e que têm depois um reflexo na capacidade de o cuidador informal prestar cuidados”, lembra, dando como exemplo a diabetes ou a hipertensão, entre outras patologias.

Todos pelos doentes

Promovida pela Merck Portugal, a conferência foi organizada no âmbito da semana “As one for patients”, assinalada em vários países, e reforçando o posicionamento da companhia. “Todos pelos doentes, ao lado dos doentes, e dos que deles cuidam, como uma só equipa” é o mote, como lembrou a comunicadora Fernanda Freitas, a quem coube a tarefa de moderar o debate.