Proibido fotografar?

Pergunto-me se um dia destes se pagará multa por contemplar um qualquer edifício urbano – se nos perguntarão se a objectiva da memória usa lente profissional ou se o olhar é meramente turístico.

Foto
Mercado do Bolhão Nelson Garrido

Entrámos no Mercado do Bolhão com o ânimo do sol, que ia varrendo o frio invernal, entusiasmados com mais um projecto fotográfico, desta vez num espaço icónico da cidade, após o restauro. As escadas em caracol aliciaram-nos à primeira experiência, logo interrompida pelo zelo dos seguranças, a informar-nos da proibição de fotografar no local: só com autorização da Câmara. Mas selfies, com o telemóvel, já se podia.

Passámos energicamente às ditas-cujas, à entrada do Mercado, perdido o ânimo acalentado durante meses e desorientados pelo absurdo de normas arbitrárias, que escolhem promover o vício da imagem sem fulgor, despejada nas redes sociais, a apoiar uma arte com fundura. Afinal, para se ser artista é preciso pagar taxa.

A boa vontade tenta desculpar os porta-vozes, que, coitados, estão apenas a cumprir ordens e não se lembram de usar do senso crítico para questionar a autoridade. Se se chega ao fim da cadeia e se descobre quem responsabilizar, nem por isso os motivos se tornam claros: é assim só porque sim. Muitas vezes, nem os próprios sabem de onde vieram nem porquê: as regras têm o seu fim em si mesmas e devem ser cumpridas apenas porque são Regras.

Aposto que algumas somente vêem a luz do dia porque alguém, para seu gáudio secreto, resolveu fazer a experiência: “Deixa ver se os sonsos comem e calam”. E os “sonsos” fazem isso mesmo, porque lhes dizem que são Regras, com os olhos arregalados, a dar ênfase ao “r” em maiúscula, que inicia o outro termo sacrossanto do burocratês: o Regulamento.

Pergunto-me se um dia destes se pagará multa por contemplar um qualquer edifício urbano – se nos perguntarão se a objectiva da memória usa lente profissional ou se o olhar é meramente turístico e com intenções de lazer, amador, leigo ou de(s)formado. Assim já pode ser, posto que o material seja armazenado durante prazo restrito.

O exercício da liberdade criativa incomoda, com o seu potencial transformador, sobretudo se for em praça pública – essa que é de todos. Para isso, é preciso ter-se licença e reconhecer-se o mecenato, preencher requerimento, pagar feudo ao senhor. O mesmo acontece na dança, por exemplo, em que os bailes têm de ser clandestinos e sujeitar-se ao planeamento furtivo, para que continuem a ser livres. A arte, a alegria têm de ser programadas, consentidas e devidamente taxadas ou confinadas a espaços privados e às paisagens de que o município ainda não se apropriou e a política ainda não se lembrou, mas onde os drones já entram sem pedir licença.

Em breve, poucas restarão, já que os esforços de “sustentabilidade” se tornaram a desculpa perfeita para se legislar cada palmo do mundo habitado e se adoptar uma ingerência grosseira na vida e na mente do indivíduo, em nome do “bem colectivo”. Do colectivo de déspotas, note-se.

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