A tarde em que a Argentina acendeu a luz a Lionel Messi

O que se passou no Qatar vai ficar para sempre como uma das mais belas finais na história não dos Mundiais, mas do futebol. E foi a tarde em que Messi se prestou a ser como Maradona.

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Lionel Messi celebra em Lusail Reuters/MOLLY DARLINGTON
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Certo dia, numa conversa de café, alguém se lembrou de dizer que Lionel Messi teria de carregar a Argentina às costas num título mundial para poder pensar em ser o melhor jogador da história do futebol. Messi ouviu. E acreditou. Levou aquilo tão a sério que andou até último dia da sua carreira na selecção a tentar fazê-lo. E fez.

Neste domingo, com o triunfo da Argentina no desempate por pontapés da marca de penálti (4-2, após 3-3 no prolongamento), frente à França, na final do Mundial 2022, Messi ficou a saber que é como Diego Armando Maradona. Tal como “El Pibe” em 1986, arrastou a Argentina até uma final, desbloqueou os jogos com golos e com magia, prestou-se até a um golo “maradonesco” na meia-final – lá está, para acabar com as conversas de café – e tratou de erguer o troféu no dia em que marcou dois golos e ainda inventou outro. Como diria Eva Perón, não chores por ele, Argentina, que o homem conseguiu o que queria.

Mas por que motivo temos de comparar Messi a Maradona? Por que motivo um título mundial é visto como factor decisivo no “trono” de melhor jogador de sempre? Por que motivo existe sequer esse trono? Por que motivo comparamos épocas tão diferentes? São perguntas lógicas, mas o desporto nunca diz que não a um bom culto de personalidade. Os “futeboleiros” querem dizer quem é o melhor da história. Até pode nem ser Messi, que isso nunca será conversa fechada, mas, pelo menos hoje, mais do que em qualquer outro dia, Messi terá mais legitimidade para dizer que é ele.

Mas troquemos as odes individualizadas pelo futebol. E, no que diz respeito ao futebol, ler o título desta crónica talvez provoque estranheza na formulação. Tanta coisa sobre o Messi e depois escrevemos que foi a Argentina quem lhe acendeu a luz? Pois bem, foi mesmo isso que se passou. Numa tarde em que marcou e foi decisivo, Messi fez parte de uma equipa que nunca tinha sido tão equipa como hoje.

A Argentina, que era de um homem só, foi uma equipa. A França, que era uma equipa, valeu-se de um homem só – Kylian Mbappé, o herói de uma turma que nada fez durante 80 minutos de jogo. Que paradoxo. E que noite. Talvez a melhor noite de uma final de Mundial.

Palavra a Di María

O que a Argentina começou por fazer em Lusail foi de um nível técnico e táctico que roçou a genialidade por parte de Scaloni. Geralmente, os colegas de Messi são utilizados como engodos para o craque poder jogar. Desta vez, Scaloni definiu que seria Messi o engodo para Di María poder jogar – e que bem lhe fez ter descansado durante quase todo o Mundial.

Foi demasiado evidente a forma como Álvarez, Messi, De Paul e até mesmo Mac Allister se chegavam ao corredor direito, arrastando a França para esse lado. Quem faltava? Faltava Di María.

Sendo mosquinhas na palestra pré-jogo, talvez tivéssemos ouvido algo como: “Ángel, vais ficar colado à linha. Não sais de lá, mesmo que o jogo esteja no lado oposto. A bola vai chegar a ti, que o Lionel trata disso”.

A Argentina esteve desde o primeiro minuto a explorar Di María jogada sim, jogada sim. Um jornalista dizia na bancada de imprensa “é como se a França não soubesse que Di María existe”. E parecia mesmo isso, já que os franceses facilmente foram levados nesse engodo.

Di María chegava a ser solicitado quando nem era essa a melhor opção de passe disponível, algo que adensava ainda mais o plano tão claro de Scaloni – na primeira parte, oito das 18 entradas argentinas no último terço foram pelo lado esquerdo.

O engodo era testado vezes sem conta e, aos 21’, já depois de um trio de pormenores mágicos de Di María, o ala viu-se em um contra um com Dembélé – Koundé tinha sido chamado a fechar dentro, como o plano argentino previa.

Dembélé foi driblado, embrulhou-se com Di María e houve penálti – muitos poderão dizer que foi um erro, mas, não sendo um equívoco claro e óbvio, mas sim um lance de interpretação de intensidade, o VAR nada pôde fazer, mesmo que até tenha considerado um contacto insignificante. Lionel Messi foi chamado a bater o penálti e não falhou o sexto golo no Mundial.

Aos 36’, novamente o mesmo engodo. E por que motivo haveria de ser outro? A Argentina chamou a França ao corredor e conseguiu que Messi tocasse na bola entre linhas.

Ora, quando isso acontece pouco há a fazer. Com dois toques na bola, de costas para a baliza, Messi destruiu a defesa adversária e permitiu a Álvarez libertar MacAllister em profundidade. O médio cruzou e houve alguém a finalizar sem dificuldade no lado esquerdo. Quem? Di María, claro – já sabíamos que ele ficava por lá, à espera que lhe chegasse o ouro.

A França já jogava com Mbappé no centro, depois de tirar Giroud, mas neste domingo não se tratava de ter a estrela no local A ou B ou sequer de ter o criativo C ou D. O que havia para resolver era o enigma táctico criado por Scaloni, mas era demasiado tarde. O estrago estava feito.

Remates? Nem vê-los...

Para a segunda parte, já se previa, haveria Argentina a correr pela vida, como se de cada bola disputada dependesse a vida de cada um daqueles onze – mais os milhares na bancada e os milhões na Argentina.

A França teria sempre um denso bloco de pernas “albicelestes” pela frente e isso, para uma selecção que não estava especialmente inspirada, seria hercúleo.

Foi uma segunda parte mais aborrecida e o marasmo só foi interrompido aos 64’, quando Scaloni tirou do campo o homem que lhe deu este jogo. Di María recebeu uma ovação tremenda e deu lugar a Acuña – mais um sinal de que, com 2-0, era tempo de arrumar as trouxas e recolher a casa com a taça.

Em mais de uma hora de futebol, a França ainda não tinha um único remate em todo o jogo – à baliza, ao poste, à bancada, às pernas argentinas, aos painéis publicitários... nada.

Só de bola parada dispararam, da cabeça de Muani, mas se aquilo era o melhor que tinham, então muito felizes poderiam dar-se de só estarem com 0-2.

Até que, aos 78’, Muani conseguiu fugir a Otamendi, em profundidade, e foi puxado pelo defesa do Benfica. Mbappé bateu o pontapé com força e colocação, porque só assim superaria um especialista como Martínez, que ainda tocou na bola.

Praticamente no lance seguinte, Messi perdeu a bola e a jogada acabou com uma triangulação entre Thuram e Mbappé, com o avançado do PSG a finalizar à meia-volta com tremenda qualidade. Martínez voltou a tocar na bola, mas em vão. 2-2.

Thuram ainda esteve perto do golo, salvo por Martínez, e Messi fez o mesmo, mas contrariado por Lloris. O que se passava em Lusail não era indicado para cardíacos, mas ainda bem que aqueles golos não aconteceram: precisávamos de mais meia hora. E na altura nem sabíamos o quanto.

Loucura no prolongamento

Diz-se que nos prolongamentos nada se passa, porque as equipas têm mais medo de perder do que vontade de ganhar. Até nisso esta final tratou de ser especial.

Houve várias oportunidades de golo, num jogo que, por incrível que pareça, ficou partido. Houve golo de Messi quanto todos os caminhos iam dar aos penáltis e golo de Mbappé, novamente de penálti, quando já nada parecia tirar o “caneco” à Argentina.

E lá fomos nós para os penáltis. Coman e Tchouaméni falharam para a França e ninguém falhou para a Argentina – que teve ainda o detalhe supremo de chamar Dybala, um corpo inútil neste Mundial, para bater um penálti nesta final.

Acabemos com Messi novamente. “Adoro o meu título não oficial, precisamente porque o mereci”, é uma frase de uma personagem de Christopher Waltz num filme de Tarantino. A Messi, na demanda por ser o melhor de sempre, ser-lhe-á dado esse epíteto em muitas bocas, depois do que se passou em Lusail. E, citando Waltz, ele vai adorá-lo, precisamente porque o mereceu.

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