Por delicadeza, perdi a minha vida

Não ter dinheiro para comer todos os dias não podia continuar a ser vida. Merecia comer todos os dias. “Não autorizado.” Dizia-lhe o cartão multibanco.

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Thought Catalog/Unsplash

A frase é do Rimbaud, não sua. Não conhece a frase nem o Rimbaud. Pensa nas opções que tem tomado. Quantas vezes se sujeitou a fazer coisas que não queria? Inúmeras. “Todos nós. Todas nós.”

Desabafa de si para si. Traz uma mochila pesada aos ombros enquanto escreve algo na aplicação “Notas” do telemóvel. Estacada na fila do supermercado, faz contas ao que colocou no cesto. Talvez o dinheiro que tem não chegue para tudo. Se tiver de escolher, vai deixar ficar a embalagem grande de sumo de pêra-rocha. Tem pena mas é um luxo. Os bifes de frango e o arroz tem mesmo de ser. Está mais magra. O dinheiro não dá para comer o mês inteiro. Trabalha que nem uma mula e o que ganha não chega.

Por vezes o que traz na mochila, por algum motivo, não é entregue ao destinatário. As regras da empresa dizem que tem de mandar a comida para o lixo, que a comida que devia entregar, se por algum equívoco não chegar ao destino, tem de ser eliminada. Uma vez quebrou as regras, tinha tanta fome e a pizza que não conseguiu entregar chamava por si como um cãozinho perdido a pedir um osso. O seu estômago era um cãozinho esfaimado a pedir pizza. Encostou a bicicleta e abriu a mochila, sentou-se no degrau do passeio e comeu a pizza toda. De uma só vez. Cogumelos e azeitonas, uma maravilha.

Os ombros doíam na fila do supermercado, a mochila que carregava pesava-lhe. Na aplicação “notas” do seu telemóvel podia ler-se:

“Quando era criança contei à minha mãe que queria ser poeta.
Riu-se com estrondo e mandou-me emigrar.
Disse que só sonhava ser poeta quem desejasse morrer de fome.
Fiz a vontade à minha mãe e tenho a despensa vazia.”

Não ter dinheiro para comer todos os dias não podia continuar a ser vida. Merecia comer todos os dias. “Não autorizado.” Dizia-lhe o cartão multibanco. Na caixa teve de deixar o sumo e o frango. Levou o arroz. Afinal tinha menos dinheiro do que julgava. Por delicadeza, tinha decidido emigrar. Por delicadeza, decidiu sair do quarto que dividia com cinco irmãos. Por delicadeza, prometeu que um dia ia ganhar dinheiro a sério e ajudar a família. Sentia que por delicadeza perdia a sua vida.

Como uma bruta pedalou até casa, na verdade um quarto que mais parecia uma despensa. Como uma bruta fez arroz com arroz e comeu até sentir um refluxo de azia. Como uma bruta foi às urgências do hospital público e esperou cerca de cinco horas até ser atendida. Nenhuma doença, só cansaço extremo e nervoso acima da média. Voltou para a casa-despensa e quis voltar para o seu país. Pensou em soluções. Nenhuma. Por delicadeza, foi trabalhar no dia seguinte.

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