Carlos Manuel Gonçalves leva os monstros do seu imaginário de criança a Veneza

É através da cerâmica que os monstros nascidos das vivências de infância de Carlos se transformam em algo material. Até 30 de Outubro, um deles está em exposição na Semana de Design de Veneza.

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As peças de cerâmica são a forma de o artista partilhar a sua personalidade com o mundo NUNO ALEXANDRE

E se os monstros fossem tudo menos assustadores? Esta é a premissa por detrás das peças de cerâmica de Carlos Manuel Gonçalves. O artista, membro da rede de artesãos Portugal Manual, inaugurou, a 8 de Julho, a sua primeira exposição individual, Monstruário, no estúdio Pura Cal, na LX Factory. Agora, vai fazer parte da exposição Of Forms and Origins a ter lugar na Semana de Design de Veneza, entre 30 de Setembro e 30 de Outubro, no Hotel Mocenigo Palace. É o único português a ter uma obra em exposição.

O convite para a Semana do Design de Veneza partiu da Arte Design Venezia, a associação de artes responsável pelo evento, que lhe lançou o desafio contando que o artista teria um trabalho pronto para submeter. “Deram-me duas semanas para apresentar uma peça e eu não tinha nada”, explica Carlos. Considerando tratar-se de uma oportunidade “que não podia desperdiçar”, decidiu pôr mãos à obra. “Obviamente, tendo o meu imaginário já tão próprio, tinha de apresentar uma criatura”, justifica.

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Peça The Mutant Unicorn em exposição na Semana de Design de Veneza André Rosa

A peça, criada com o tema das alterações climáticas em mente, intitula-se de The Mutant Unicorn e pretende contar a história de “um ser outrora exuberante, que vivia num mundo colorido e feliz, e que agora se alimenta de outras espécies, ou do que resta delas, para sobreviver”, como se pode ler no texto de apresentação do artista.

Em Lisboa, quem passa pela Rua do Sacramento a Alcântara, localização do Atelier Informal, onde é hoje um dos artistas residentes, pode ver pelas janelas do n.º 64 uma série de figuras coloridas a repousarem sobre os móveis. São os seus monstros e criaturas, que Carlos considera terem um lado “ingénuo, divertido e quase que meio tolo”. A criação destes seres acontece de forma fluida, diz o ceramista. Um processo “natural e orgânico” que frequentemente se inicia “sem pensar muito sobre o que será o resultado”. Só tem de se deixar levar.

De passatempo a carreira

Carlos Manuel Gonçalves iniciou-se nesta “aventura muito recente” da cerâmica no início da pandemia, aos 37 anos. Na altura, trabalhava há alguns anos em produção de teatro, tendo assumido, por exemplo, o cargo de direcção da produção Grease, O Musical. A cerâmica surgiu como um passatempo a que se agarrou depois de participar num workshop de porcelana, em 2020. Uma “experiência interessante” que o fez perceber que desejava “moldar barro com as mãos”.

“Costumava pegar nas minhas peças e ia cozê-las a outros ateliês”, explica o artista, apoiado sobre a mesa que ocupa o espaço central da sala principal do atelier, enquanto recorda os primeiros tempos de actividade. Foi assim que começou a receber algum feedback positivo “muito inesperado”.

A pandemia deu-lhe o empurrão necessário para se dedicar mais à cerâmica. Foi no ano passado, durante o segundo confinamento, que deu o salto para dar a conhecer o seu trabalho a mais pessoas. “Decidi mostrar umas primeiras peças através da minha página de Instagram para ver o que as pessoas sentiam”, recorda. A reacção do público levou-o a compreender que estava a “acontecer alguma coisa”, impulsionando a decisão de viver inteiramente desta arte, até porque já não se sentia “realizado com a antiga profissão”.

Uma forma de terapia

Na sua sala de trabalho, na parte de trás do atelier, instala-se uma fraca luz da manhã que entra pela janela do canto. O pequeno espaço encontra-se preenchido por móveis com alguns dos seus trabalhos em curso e pelos fornos em que cozinha as suas peças. No centro da mesa de trabalho destaca-se uma criatura com uma crista e um coração ao peito, ainda rodeada pelos materiais que a fizeram nascer.

“Há aqui toda uma mistura do meu lado infantil popular com toda a arte que consumia em criança, mas também da música que ouvia na adolescência”, explica o artista, apontando para esta e outras peças. Deste percurso também faz parte as suas “vivências no interior do Alentejo”: “O facto de ter crescido no Alentejo, na altura em que foi, influencia que as caras que faço tenham também um lado da gente dos campos”, comenta, enquanto pega numa peça dourada com braços de serpente.

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Nuno Alexandre

Vê na cerâmica mais que um simples trabalho. É “algo terapêutico” que lhe proporciona, desde o início, a sensação única do mundo a desaparecer à sua volta. “Houve uma conexão quase que imediata. Foi o ponto de partida para ter chegado aqui, à minha profissão a tempo inteiro”, diz, animado.

Estes monstros divertidos, marcados por um “lado de pessoa”, são parte de Carlos Manuel Gonçalves, mas estavam “adormecidos no imaginário de criança”. Até agora.

Texto editado por Amanda Ribeiro

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