Aeroporto de Lisboa – continuando a sacrificar a saúde pública no altar dos interesses económicos

Lisboa é a segunda pior capital europeia em termos de exposição ao ruído do tráfego aéreo, logo a seguir ao Luxemburgo. Enquanto a atuação do Governo continua subjugada aos interesses económicos de multinacionais como a Vinci, resta à sociedade civil mobilizar-se.

Com a incredulidade dos ingénuos que ainda confiavam na existência de uma réstia de pudor nos atos executivos do Governo, mesmo quando subordinados aos interesses económicos de grandes multinacionais, tomámos conhecimento do projeto de portaria que visa aprovar um regime excecional e temporário relativo à operação de aeronaves no Aeroporto Humberto Delgado (Lisboa), cuja consulta pública fora oportunamente lançada num período de férias.

Depois da excecional acalmia nos céus, resultante da pandemia, o ruído provocado pelo tráfego aéreo com origem ou destino no Aeroporto Humberto Delgado voltou a flagelar a população dos concelhos de Lisboa e Loures, tanto no período diurno como noturno, prejudicando gravemente o seu bem-estar e a sua saúde, ou, se assim quisermos, o seu direito à integridade moral e física.

De acordo com a consultora de aviação to70, o Aeroporto Humberto Delgado é, a nível europeu, de longe o aeroporto com o maior número de pessoas expostas por movimento aéreo, tanto num raio de 5km como de 10km, sendo a população total afetada de 450.000 e de 1.000.000 habitantes, respetivamente. Já o relatório “Ruído ambiental na Europa 2020” da Agência Europeia do Ambiente refere que Lisboa é a segunda pior capital europeia em termos de exposição ao ruído do tráfego aéreo, logo a seguir ao Luxemburgo, tanto no que respeita ao ciclo de 24 horas, com 15% da população da área metropolitana exposta a níveis superiores a 55 dB(A) (> 250.000 pessoas), como durante o ciclo noturno (das 23h–7h), com 10% da população exposta a níveis superiores a 50 dB(A). Integra assim o grupo dos grandes aeroportos com o maior número de pessoas expostas, junto com os aeroportos de London-Heathrow, de Berlin-Tegel (entretanto encerrado), e de Frankfurt.

Em julho de 2019, a associação Zero fez medições de ruído no Campo Grande que revelaram valores muito acima dos limites definidos no Regulamento Geral do Ruído, com um nível de ruído nas 24h do dia de 74 dB(A), 9 dB(A) acima do limite legal aplicável (65 dB(A)), e um nível de ruído noturno de 66 dB(A), 11 dB(A) acima do limite legal nesse período do dia (55 dB(A)). As medições foram repetidas no fim de abril de 2020, em plena pandemia e com um tráfego aéreo residual, ainda com valores elevados, mas dentro da legalidade. Com o regresso do turismo, as medições realizadas pela Zero em julho de 2022 em Camarate, no concelho de Loures, voltaram a registar violações grosseiras dos limites estabelecidos, tanto no que diz respeito ao número de voos durante o período noturno como ao nível de ruído.

No entanto, é do conhecimento das autoridades, nomeadamente da Agência Portuguesa do Ambiente, pelo menos desde 2017, que existe incumprimento da legislação em vigor por parte da ANA – Aeroportos de Portugal, concessionada à multinacional Vinci. O Mapa Estratégico de Ruído referente ao Aeroporto de Lisboa de 2016, o último disponível no site da Agência Portuguesa do Ambiente, mas desatualizado tendo em conta que até 2019 o número de voos aumentou em quase 25%, já revelava incumprimento da legislação em quatro das sete estações de monitorização no ciclo de 24 horas, bem como no período noturno (23h– 7h) em cinco das sete estações.

Para compreender verdadeiramente a dimensão do excesso de ruído é preciso ter em conta que o nível é expresso numa escala logarítmica, correspondendo cada aumento de 3 dB(A) a uma duplicação da intensidade sonora e cada aumento de 10 dB(A) ao dobro em termos de sensação auditiva. Não é por acaso que, nas Orientações em Matéria de Ruído Ambiental para a Região Europeia, a Organização Mundial de Saúde recomenda limites para a exposição ao ruído proveniente do tráfego aéreo de 45 dB(A), no ciclo de 24 horas, e de 40 dB(A) no período noturno, muito inferiores a legislação portuguesa, uma vez que valores superiores provocariam efeitos adversos para a saúde e para o sono da população afetada.

Estudos científicos demonstram de forma inequivocada que o ruído proveniente do tráfego aéreo provoca: a redução da qualidade do sono e eventos de acordar noturno, a degradação da qualidade do sono com eventos de picos de ruído (como acontece particularmente com a passagem de aviões); o aparecimento de lesões vasculares, disfunção endotelial e hipertensão arterial; um aumento do risco de admissão hospitalar por doença cardiovascular; um maior número de admissões hospitalares e mortalidade mais elevada por doença cérebro - e cardiovascular; um aumento linear do risco de insuficiência cardíaca e doença cardíaca hipertensiva; e uma relação linear entre a exposição ao ruído e o aumento de acidente vascular cerebral (vulgo “trombose”).

Além disso, a exposição ao ruído proveniente do tráfego aéreo é suscetível de provocar efeitos negativos no desempenho cognitivo de crianças, de diminuir a capacidade de memória e compreensão de leitura, e de reduzir a tolerância ao ruído em alunos do ensino secundário.

Os grandes aeroportos europeus localizados próximos ou dentro de zonas urbanas já instituíram interrupções de operação noturna para proteger o bem-estar e a saúde da população como, por exemplo, Paris-Orly (das 23h30–6h30), Düsseldorf (das 22h–6h, chegadas programadas permitidas até às 23h para aeronaves de médio curso), Frankfurt (das 23h–5h). Recentemente, o governo dos Países Baixos anunciou a redução em 20% dos voos anuais no aeroporto de Schipol, o maior do país e o 3.º maior da Europa, para reduzir a poluição sonora e atmosférica, escandalizando as corporações aeronáuticas.

Acrescentando ofensa à injúria, o projeto de portaria vai permitir aumentar ainda mais o número de voos noturnos no Aeroporto Humberto Delgado, agravando os danos para a população afetada nos concelhos de Lisboa e Loures quando, por si só, o atual incumprimento do Decreto-Lei n.º 9/2007 (Regulamento Geral do Ruído) decorrente da exploração do Aeroporto Humberto Delgado deveria obrigar à redução do tráfego aéreo, nomeadamente durante o período noturno entre as 23h e as 7h.

Enquanto a atuação do Governo continua subjugada aos interesses económicos de multinacionais como a Vinci, concessionária da ANA – Aeroportos de Portugal, resta à sociedade civil mobilizar-se.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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