Não-monogamia e ideias (des)feitas

Ser não-monogâmico é visto como “imoral”, apesar do elevado número de relações que experimenta algum tipo de infidelidade e desta ser consistentemente apontada como um dos principais motivos das separações e do elevadíssimo número de separações e divórcios.

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Mais do que nunca, fala-se de novas configurações familiares e relacionais e, pelo meio, de não-monogamia. O conceito cada vez menos nos é estranho, porém, é ainda difícil entender e aceitar quem se comporta de forma diferente da maioria. A Biologia, a Psicologia e a História podem dar uma ajuda. Vamos desafiar duas ou três ideias?

A monogamia é um comportamento natural

Não parece existir qualquer tendência biológica para a monogamia. As espécies que a praticam estão em larga minoria (apenas 3% a 5% tem um comportamento monogâmico) e os humanos apenas passaram a organizar-se em núcleos monogâmicos a partir de dado momento histórico.

Na verdade, a sua prática coincide com o surgimento do conceito de propriedade privada (e com este, o de herança). Está na base da primeira forma de núcleo social criada com base em condições materiais (e não naturais) – a família – e com ela, a primeira divisão do trabalho, cabendo ao homem o trabalho fora de casa e à mulher o trabalho doméstico, a gestação dos filhos e o cuidar dos filhos. Assim, a monogamia tem na sua origem, um propósito de organização social, económica e política.

De forma simples, não diz respeito ao amor ou à quantidade de pessoas com quem nos relacionamos, mas antes às normas que regulam os afectos.

Monogamia, exclusividade e poder

Nascida num momento em que a paternidade apenas podia ser assegurada pela exclusividade da relação de determinada mulher com determinado homem, a monogamia permitia assegurar a transmissão da propriedade. Sendo o inverso irrelevante, esta circunstância induziu um diferencial de poder nas relações.

Foram sempre as mulheres as mais penalizadas ao quebrar a regra da exclusividade – por exemplo, no adultério ou na prostituição. Esta última pode ser vista como um escape à monogamia que normaliza, para o homem, a violação do seu pressuposto central, enquanto a mulher é penalizada do ponto de vista moral, social, económico ou criminal.

Este panorama traduz desigualdades de poder e de género que se perpetuam até hoje, mesmo em casais jovens – porque a educação e cultura continuam a ditar que o amor monogâmico é o amor bom e a exclusividade o seu alicerce. A linguagem aceitável do amor romântico (representado no cinema, na literatura, na fotografia ou até nas histórias infantis) tem apenas duas opções: exclusividade ou infidelidade (esta última levando, quase sempre, à ruptura).

O amor romântico tem um claro paralelismo com a exclusividade que as religiões monoteístas exigem e que, desde há séculos, estão na base da nossa organização social, bem como com a ideia de pecado e culpa, de “sacrifício” de desejos ou impulsos por amor a Deus.

A maioria das pessoas é monogâmica

Teoricamente, sim. Mas intenção e comportamento são coisas muito diferentes. Na verdade, há adultério documentado em todas as culturas.

Uma percentagem significativa dos casais monogâmicos viola o pressuposto basilar da exclusividade, apesar do modelo de “escada relacional” instituído – conhecer alguém, namorar, casar, ter filhos. Mais de um quarto dos adultos é sexualmente infiel aos parceiros, e outro tanto é “afectivamente” infiel (desenvolve afectos por outras pessoas, ocultados dos/as parceiros/as).

Nas últimas gerações, muito raramente as pessoas têm um único parceiro durante toda a vida (em 2020, o rácio de divórcios por 100 casamentos foi de 91,5% em Portugal). Alguns autores falam da prática de monogamia em série – muitos parceiros, um de cada vez. Por outro lado, não há estatísticas precisas sobre não-monogamia.

Um dos motivos poderá ser o estigma associado, alimentado pelo estereótipo sobre o não-monogâmico – ser promíscuo ou negligente, ser incapaz de ter relações “sérias” ou “com futuro” (que possam cumprir a “escada relacional” instituída) – e a discriminação por não ter uma relação “convencional”.

O estigma está não apenas ligado à norma estatística, mas a questões culturais e religiosas: ser não-monogâmico é visto como “imoral”, apesar do elevado número de relações que experimenta algum tipo de infidelidade e desta ser consistentemente apontada como um dos principais motivos das separações e do elevadíssimo número de separações e divórcios.

O surgimento (?) da não-monogamia

Sabemos que, ao contrário do que se possa pensar, não é uma prática dos tempos modernos. A sua visibilidade renovada prende-se com mudanças profundas no papel social da mulher (possibilitado, ao longo do tempo, pelas lutas pelos direitos das mulheres, pela contracepção, pelo trabalho fora de casa, pelo direito ao voto e ao divórcio), com os avanços da ciência e com o declínio da família como unidade social e económica.

Hoje, em caso de dúvidas sobre paternidade, é possível recorrer a um teste de ADN. É também verdade que a instabilidade económica, a mobilidade da força de trabalho​ e a necessidade de outros modelos de organização social (por exemplo, a partilha de casa entre várias pessoas) tem também contribuído para a desvalorização da própria instituição do casamento e, por arrasto, facilitado a reflexão e a normalização de outras possibilidades.

Poliamor = não-monogamia?

O poliamor é uma prática onde os envolvidos têm vários parceiros amorosos/sexuais, com o conhecimento e consentimento de todos. A não-monogamia é uma designação mais ampla que descreve uma relação em que os participantes admitem, de forma explícita, a possibilidade de ter outros relacionamentos românticos e/ou sexuais – ou seja, os envolvidos não partem para a relação com a regra da exclusividade “escrita na pedra”.

Nas relações de natureza não-monogâmica podem estabelecer-se vários protocolos, por exemplo, relações poliamorosas, relações abertas, relações “don’t ask/don’t tell”, anarquia relacional ou até relações onde, na prática, os envolvidos se comportam de forma monogâmica (ou seja, não têm outras relações, mas essa possibilidade não é interdita, a relação é aberta a essa hipótese).

Curiosamente, casais que acordam ser não-monogâmicos podem ter menos relações subsequentes do que os monogâmicos – por hipótese, porque o elemento de transgressão e a adrenalina provocada por trair/enganar/esconder, poderosos ingredientes das relações extraconjugais, são removidos da equação.

O mito da alma gémea

Uma das falácias do amor romântico prende-se com a expectativa de que a mesma pessoa preencha todas as nossas necessidades (paixão, apoio emocional, companhia, sociabilização, imprevisibilidade, aventura, satisfação sexual, parentalidade e o indiscutível conforto das rotinas). A prática desafia esta ideia.

Mais ainda, não há qualquer evidência de que os sentimentos, emoções e desejos sejam exclusivos ou subtractivos (se assim fosse, só seria possível ter um amigo ou as mães/pais poderiam amar apenas um filho). No entanto, vários outros aspectos são subtractivos (tempo, energia, disponibilidade), o que torna as relações monogâmicas mais simples de gerir (não necessariamente melhores). Alguns argumentam que as relações não-monogâmicas assentam em três pilares: consentimento, comunicação e gestão do tempo.

O papel do ciúme

O ciúme tem uma base biológica semelhante à ansiedade: ocorre quando percebemos uma ameaça, real ou imaginária, que nos faz sentir inseguros, enganados ou excluídos. Embora, em teoria, a monogamia possa actuar como amortecedor de experiências que o provocam (porque se baseia numa lógica de exclusividade), na prática não é assim, porque o ciúme é largamente alimentado por dependências geradas por sentimentos de exclusividade e posse – e por isso, é uma das bases de sustentação da ideia de amor romântico.

Não é algo inerente ao amor, mas uma resposta ensinada a partir de atitudes culturais, que reforça dinâmicas de poder, especialmente penalizadoras para as mulheres: elas são mais estigmatizadas quando exibem ciúme (vistas como emocionalmente dependentes, mais fracas, mais frágeis) e mais atingidas por comportamentos violentos e abusivos justificados pelo ciúme (por exemplo, violência doméstica, psicológica e sexual, reforço da dependência emocional e financeira, comportamento controlador ou ameaçador por parte do parceiro, etc.).

Maior abertura e transparência podem ajudar a perceber os verdadeiros motivos do ciúme e dissolver inseguranças. Por isso, casais não-monogâmicos tendem a ser menos ciumentos. Os envolvidos sentem-se apoiados no processo de gestão de inseguranças e são mais abertos ao debate sobre as suas fontes: medo, baixa auto-estima ou qualquer outro problema na relação.

Os estudos

Existem, ainda, poucos estudos a este respeito, mas a maioria indica que a abertura afectiva ou sexual fortalece a relação. Níveis elevados de satisfação, confiança e compromisso podem relacionar-se não apenas com níveis mais elevados de honestidade, transparência, capacidade de comunicação e partilha, mas com a possibilidade de descentrar de uma única pessoa uma enorme responsabilidade.

Do que se sabe, as relações não-monogâmicas têm níveis semelhantes de investimento, compromisso, satisfação e duração, quando comparadas com relações monogâmicas. No entanto, os envolvidos exercem menor pressão sobre os parceiros e sentem menor pressão para atender a todas as suas necessidades.

Relatam também que esta modalidade de relação facilita o conhecimento do outro e o desenvolvimento pessoal, correspondendo a uma maior autonomia e liberdade para a auto-descoberta, uma comunicação mais aberta e mais franca. Por exemplo, a possibilidade (e comprovada probabilidade) de atracção romântica e/ou sexual por outras pessoas é normalizada e deixa de ser encarada como traição ou sinónimo de falta de afecto.

Outros benefícios apontados são: níveis mais baixos de ciúme e outras manifestações de insegurança, menos monotonia e maior entusiasmo face a novas experiências; aumento da satisfação sexual no vínculo primário (relação principal); sensação de liberdade combinada com segurança; possibilidade de expressão plena e de não ter que representar papéis.

Reforçando as palavras de Tânia Graça, nada disto é sinónimo da apologia da não-monogamia ou de qualquer outro tipo de configuração. Todos podemos e devemos escolher como queremos relacionar-nos connosco e com os outros. Nesse processo, porém, pode ser muito útil questionar as origens nossa educação sentimental.

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