Depois de furar a bolha de Bruxelas, os cidadãos não aceitam mais do mesmo

A Conferência sobre o Futuro da Europa entrou num sprint: resta pouco mais de um mês para transformar as 178 recomendações dos Painéis de Cidadãos em propostas mais robustas que serão incluídas no relatório a entregar às três instituições europeias na grande sessão de encerramento a 9 de Maio.

Fotogaleria

“É possível fazer propostas se não pudermos mudar os tratados sobre competências partilhadas? [As instituições] estão preparadas para levar a cabo as nossas propostas de alteração dos tratados?” O tom assertivo das perguntas de Sebastián Guillén, espanhol, na plenária deste sábado da Conferência sobre o Futuro da Europa (CoFoE), deixa claro que os cidadãos europeus estão a levar a sério a missão que lhes foi conferida: elaborar propostas sobre os caminhos da União Europeia. E não se contentam com respostas vagas: “Se não tivermos estas respostas, não conseguimos fazer este tipo de recomendação.”

A Conferência sobre o Futuro da Europa, que arrancou durante a presidência portuguesa do Conselho e terminará sob a égide francesa, entra na sua fase mais complexa, sob pressão para entregar resultados tangíveis até à conferência final agendada para 9 de Maio. Na bagagem estão seis meses de trabalho dos quatro grandes Painéis de Cidadãos, nos quais se procurou chegar a consensos para produzir recomendações; várias reuniões de grupos de trabalho onde cidadãos, políticos e representantes da sociedade civil tentaram compreender os respectivos pontos de vista; centenas de eventos nacionais e milhares de ideias partilhadas na plataforma online multilingue; e ainda as plenárias onde as recomendações foram apresentadas e as partes apresentaram as suas posições oficiais sobre as prioridades desejadas.

Fotogaleria
Philippe STIRNWEISS / Parlamento Europeu

Agora, já com as 178 recomendações em cima da mesa, inicia-se uma fase mais política do processo. O português Vasco Fernandes, um dos “embaixadores” dos cidadãos na plenária da CoFoE que está no grupo de trabalho sobre transição digital, explica que os grupos têm estado a agregar as diferentes recomendações naquilo que é, para já, um esboço das propostas finais, que terão de estar prontas até cerca do final de Abril.

Este fim-de-semana voltou a ser de trabalho duro. A sexta-feira foi dedicada a reuniões dos grupos de trabalho para analisar as propostas preliminares, reunindo-se a Plenária no sábado para apresentar os resultados das discussões, explicar os consensos e discordâncias ouvir o que dizem os participantes dos outros grupos de trabalho.

Inês Silva, outra jovem “embaixadora” portuguesa, explica que o processo tem vindo a correr melhor agora que as recomendações dos painéis de cidadãos estão em cima da mesa. “Está a ficar mais concreto, cada parte presente no grupo de trabalho está a dar feedback no que concordam, no que acham que podemos melhorar”, relata ao PÚBLICO depois das reuniões dos grupos de trabalho na sexta-feira.

Inês Silva está no grupo que trata das questões sobre “a UE no mundo”, um tema que ganhou particular relevância nos últimos meses devido à guerra na Ucrânia. “Estamos a perceber que as recomendações que temos são muito válidas”, conta a estudante de ortóptica. O francês Mansef Campos, que participa no mesmo grupo de trabalho, diz que o trabalho com os políticos e representantes da sociedade civil tem sido mais produtivo, apesar de achar que a participação dessas mesmas partes nas plenárias deixa muito a desejar.

“Sejam políticos!”

A CoFoE envolve eventos organizados a nível nacional e também ideias recolhidas através de uma plataforma online multilingue, mas o coração deste processo está no trabalho construído à volta dos quatro Painéis de Cidadãos, cada um com 200 pessoas escolhidas aleatoriamente mas de forma a compor uma amostra diversa e representativa, que votaram recomendações e elegeram aqueles que têm sido os seus representantes — os “embaixadores” na plenária e nos grupos de trabalho.

Na plenária anterior, a 11 e 12 de Março, um dos momentos marcantes foi a intervenção de Huub Verhoeven, estudante dos Países Baixos que exigiu que as instituições em particular o Conselho da UE, depois de se saber que alguns países apenas se pronunciariam sobre as recomendações dos cidadãos depois do relatório final fossem claras sobre como pretendiam pôr em prática as propostas. Ecoando um sentimento audível nos corredores e visível quando todos os “embaixadores” presentes se levantaram para apoiar a sua intervenção, Huub deixou claro: “Se querem que a nossa voz seja ouvida, dêem-nos voz.”

A confiança com que estes cidadãos comuns intervêm nas plenárias tem sido cada vez maior, à medida que evolui também o seu conhecimento sobre as matérias que têm vindo a tratar nos seus grupos de trabalho ao longo de meio ano. Mas contam também com uma grande ajuda nos bastidores.

O modelo de “assembleia deliberativa” usado nos Painéis de Cidadãos e na Plenária foi desenhado em conjunto com um grupo de especialistas de vários países onde este modelo tem sido aplicado, num processo que tem sido aperfeiçoado à medida que a conferência avança. Os cidadãos em particular os “embaixadores” são acompanhados de perto por este grupo de especialistas independentes, com reuniões regulares para compreender e corrigir em tempo útil as falhas identificadas no processo.

Há também alguns membros das instituições europeias, pertencentes ao secretariado comum da CoFoE, entre os “aliados” dos cidadãos. Numa das reuniões informais com os cidadãos, um dos membros da equipa de organização explica a “componente política” do processo, sublinhando que “a Conferência está no núcleo daquilo que são questões essenciais da UE”. “Temos dois meses para chegar a bom porto e influenciar a agenda europeia.”

“Como é que podemos abordar os políticos?”, perguntava uma das pessoas na sala. “Podes falar com quem quiseres à tua volta. Vais acabar por encontrar quem procuras”, respondia Yves Matthieu, fundador da Missions Publiques, uma entidade especializada na organização de assembleias de cidadãos. “Estão aqui para mudar a Europa. Sejam políticos!”

E os políticos?

Neste processo, o protagonismo é dos cidadãos, mas os políticos também estão atentos. Numa reunião do grupo dos Socialistas e Democratas (S&D) com a sua fatia dos eurodeputados que integram a delegação de 108 membros do Parlamento Europeu na CoFoE, um deputado mostrava-se preocupado com “tão pouco tempo” para transformar as recomendações em propostas, e depois em conclusões do relatório a ser entregue a 9 de Maio à presidência tripartida. “Isto está a tornar-se louco”, desabafou, pedindo a Iratxe García Pérez, líder dos socialistas europeus, que o secretariado comum dê orientações mais claras sobre o processo.

Com um foco cada vez maior dos cidadãos na necessidade de alteração dos tratados para acomodar algumas propostas, os partidos levantam algumas reservas. “O grupo não deve recusar a ideia de mudanças aos tratados”, propunha uma das pessoas na sala, acrescentando, contudo, que “seria um erro político apostar na convenção como o principal resultado político” ou o “único objectivo”, correndo-se o risco de frustrar as expectativas dos cidadãos.

O processo das próximas semanas, contudo, ainda é bastante incerto. Os cidadãos, como se ouve nas intervenções na plenária, querem mais transparência no processo, em particular na elaboração do relatório final e no processo de execução das propostas. “Queremos ter a certeza de que as nossas recomendações são usadas da forma certa”, referia o neerlandês Huub Verhoeven, na sua intervenção aplaudida de pé pelos colegas.

Antes de começar a plenária deste fim-de-semana, houve já no dia anterior sessões de perguntas e respostas com os cidadãos, relata a portuguesa Inês Silva. E as questões ficaram esclarecidas? “Mais ou menos, não por escrito e não directamente... Gostaríamos que tivessem respondido por escrito a todas elas”, refere.

Um avanço que parece ser mais claro para os cidadãos é começarem a ouvir respostas mais específicas sobre as recomendações. No briefing final da plenária anterior, porém, uma participante italiana mostrava-se insatisfeita com a ausência de muitos dos políticos das plenárias. Online ou presencialmente, a sensação dos cidadãos é que os outros membros da plenária assistiam apenas às sessões relativas aos seus grupos de trabalho, onde faziam as suas intervenções, e ausentavam-se nos restantes debates. “Sinto como se estivéssemos a falar para uma sala vazia”, desabafava Laura. Entre os vários desafios da conferência, a participação de todas as partes poderá ser mais um que caberá aos políticos responder à altura.


A jornalista viajou a convite do Parlamento Europeu