Um dos primeiros alarmes de guerra soou às 3h15 da manhã do dia 24, hora de Kiev: os Google Maps indicavam um estranho engarrafamento de trânsito numa estrada na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia, próxima de uma zona onde se sabia haver concentração de tropas russas – era, percebeu-se rapidamente, a máquina de guerra em marcha. 

Se dúvidas houvesse, ficou claro que, mesmo num mundo conectado, em que a diplomacia assenta em parte em ameaças e sanções económicas, e em que a ciberguerra é uma realidade premente, as guerras começam quando mísseis atingem edifícios e, como noutras décadas, quando tanques atravessam fronteiras. Mas a invasão da Ucrânia está a ser a primeira guerra hiperconectada.

Não se trata apenas de podermos seguir o conflito quase em directo nas redes sociais, com uma profusão de testemunhos, comentários, vídeos, anúncios oficiais e análises, publicados por militares, civis, políticos, jornalistas e académicos. A Internet – em particular, as redes sociais e as plataformas de mensagens como o Telegram – têm sido usadas por ambos os lados para tentar ganhos diplomáticos, influenciar a opinião pública e desmoralizar o adversário. E também, no caso ucraniano, para recrutar combatentes, organizar a resistência civil e até para encontrar alternativas no caso de uma falha na infraestrutura de comunicação.

Naquele que é um dos momentos "mais século XXI" dos últimos dias, o ministro ucraniano Mykhailo Fedorov pediu no Twitter ajuda a Elon Musk (não sem deixar de notar que enquanto Musk sonha em colonizar Marte, a Rússia sonha com ocupar a Ucrânia): Fedorov pretendia que a rede de satélites Starlink – montada pela Space X, de Musk, e concebida para fornecer Internet de banda larga de uma forma alternativa aos cabos em terra – ajudasse a manter a Internet funcional na Ucrânia em caso de disrupção. O empresário acedeu (a tecnologia precisa de receptores no solo, que Musk disse estarem a caminho, e não é claro quão eficaz será no caso de a infraestrutura de comunicações ucraniana colapsar). 

Como outros aspectos desta guerra, também a luta pelo controlo da narrativa é feita seguindo as lógicas distintas de duas eras separadas por décadas: na Rússia, os media estatais esforçam-se por transmitir a versão de Putin de que se trata de uma operação especial e que são "as autoridades ucranianas (...) que estão de facto a lutar contra a sua própria população em cidades onde não há tropas russas", como disse o apresentador de um talk show político na televisão estatal. Mas é impossível a Moscovo impedir que pelo menos uma parte dos 144 milhões de habitantes do país aceda a informação estrangeira – particularmente quando os ucranianos fazem questão de publicar em russo nas redes sociais, e quando celebridades russas se manifestam contra a guerra junto dos seus milhões de seguidores.

O Presidente ucraniano Volodimir Zelenskii – o ex-comediante transformado em improvável herói internacional – tem sabido usar as redes sociais, onde (tal como a generalidade dos líderes mundiais) publica mensagens e vídeos dos seus breves discursos. As forças armadas ucranianas também fazem questão de usar a Internet. Com o objectivo de desmoralizar as tropas invasoras e de chegar à opinião pública russa, há inúmeros vídeos de prisioneiros de guerra russos, e até um site oficial onde as famílias russas podem procurar soldados com quem tenham perdido o contacto. O site contém vídeos (alojados no YoutTube) dos prisioneiros, alguns dos quais, feridos.

Os exemplos de uma guerra que desliza continuamente pelos ecrãs são inúmeros. No Twitter, uma imagem de um militar pró-russo em Donetsk é ilustrativa: exibe uma arma anti-tanque, enquanto o outro braço segura uma câmara de filmar de aspecto profissional. 

Há uma profusão de vídeos de tanques, camiões e outros veículos destruídos ou abandonados, alguns com corpos carbonizados ao lado. Há imagens de civis ucranianos a porem-se à frente de colunas militares, de tractores a rebocarem tanques russos e o vídeo de um homem que transporta cuidadosamente uma mina nas mãos, cigarro pendurado na boca. Não é certa a autenticidade de todas estas imagens, mas algumas foram verificadas por órgãos de informação. 

Num dos vídeos verificados, no qual civis confrontam militares russos, uma mulher diz a um tropa que ponha sementes de girassol nos bolsos, para que lhe nasçam flores do cadáver – é o tipo de momento, longe das principais cidades, que (tal como outros, alguns de enorme brutalidade) dificilmente seriam captados pelas câmaras da imprensa, mas que desfilam quase ininterruptamente nos feeds do Twitter e do TikTok. 

As grandes plataformas online também têm tido, inevitavelmente, o seu papel. O YouTube desmonetizou o canal de propaganda russo RT (o que significa que o canal deixa de receber receitas de publicidade do YouTube) e disse que iria tolher significativamente a recomendação destes vídeo. O Google, o Facebook e o Twitter limitaram a compra de anúncios por entidades russas nas respectivas plataformas, e estão a aumentar os esforços para conter a desinformação.

A era da hiperconectividade permite que venham rapidamente a público detalhes que noutros tempos nunca seriam conhecidos, ou só o seriam muito mais tarde. Por exemplo, a BBC publicou conversas entre o líder checheno Ramzan Kadyrov e um dos seus principais comandantes sobre a invasão – os dois tinham o hábito de comunicar trocando mensagens de voz, que acabaram por chegar aos jornalistas. O mesmo parece ter acontecido com uma mensagem escrita por Kadyron no Telegram, em que descrevia os ucranianos como estando "armados até aos dentes" e apelava a que Putin o deixasse actuar com máxima força.

Muitos sites oficiais russos, incluindo o do Governo e o do Kremlin, têm estado inacessíveis – prováveis vítimas de ataques que não se sabe se foram mais profundos. Por outro lado, hackers civis russos vangloriam-se à BBC de estarem a causar interferências nas comunicações ucranianas. Já as autoridades ucranianas começaram este fim-de-semana a recrutar para uma recém-criada ciberforça destinada a debelar os ciberataques russos. E usam as redes sociais para publicar instruções ilustradas sobre como atirar cocktails molotov contra veículos.

A guerra hiperconectada na Ucrânia acontece não só porque estamos em 2022, mas porque, pela primeira vez, um país informatizado e com uma estrutura de comunicações moderna é palco de um conflito armado a esta escala – neste capítulo em particular, é isto que distingue a guerra na Ucrânia de outras recentes, noutras geografias. E é também isto o que lhe dá contornos novos, ainda que os rockets matem exactamente da mesma forma de sempre.

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