O Regime Geral de Proteção aos Denunciantes: Lei nº 93/2021

Com três dias de atraso, Portugal transpôs, em 20/12/2021, o conteúdo da Directiva pela publicação da lei n.º 93/2021 no Diário da República, com data de entrada em vigor 180 dias após a publicação.

Em Dezembro de 2019 foi aprovada a chamada Directiva Whistleblower sobre a proteção aos denunciantes de violação do Direito Europeu com a finalidade de proteger pessoas que denunciarem violações abrangidas pelos atos da União Europeia que dizem respeito aos seguintes domínios: (i) contratos públicos; (ii) serviços, produtos e mercados financeiros e prevenção de lavagem de dinheiro e financiamento do terrorismo; (iii) segurança e conformidade do produto; (iv) segurança no transporte; (v) proteção do meio ambiente; (vi) proteção contra radiação e segurança nuclear; (vii) segurança alimentar e animal, saúde e bem-estar animal; (viii) saúde pública; (ix) proteção ao consumidor; (x) proteção da privacidade e dos dados pessoais e segurança da rede e dos sistemas de informação; além de aspectos envolvendo interesses financeiros da UE.

A Directiva estabelece os requisitos que empresas públicas e privadas (com mais de 50 funcionários) devem cumprir nos seus canais internos de denúncias com significativa ênfase em aspectos envolvendo confidencialidade, proteção da denúncia anônima, medidas contra retaliações e prazos, pois os denunciantes deverão receber uma notificação de receção da denúncia no prazo de sete dias e as investigações internas das empresas devem durar no máximo três meses, sendo que as medidas a serem tomadas deverão ser comunicadas ao denunciante ao final do inquérito interno. Sendo que, o denunciante apenas se beneficia da proteção conferida na lei caso esteja de boa-fé e tenha fundamento sério para crer que as informações são verdadeiras.

O limite temporal dado pelo legislador europeu para a transposição desta Directiva acabou em 17/12/2021. Portugal se atrasou apenas alguns dias, em 20/12/2021 transpôs o conteúdo da Directiva pela publicação da lei n.º 93/2021 no Diário da República, com data de entrada em vigor, em 180 dias da data da publicação. Até dezembro de 2021, além de Portugal, apenas Dinamarca e Suécia transpuseram a Directiva. Abaixo algumas notas sobre as peculiaridades do novo regime:

Proibição de retaliação

Em até dois anos após a denúncia, serão considerados retaliatórias quaisquer alterações das condições de trabalho (funções, horário, local de trabalho ou retribuição, não promoção do trabalhador ou incumprimento de deveres laborais); suspensão de contrato de trabalho; avaliação negativa de desempenho ou referência negativa para fins de emprego; não conversão de um contrato de trabalho a termo num contrato sem termo, sempre que o trabalhador tivesse expectativas legítimas nessa conversão; não renovação de um contrato de trabalho a termo; despedimento; resolução de contrato de fornecimento ou de prestação de serviços; revogação de ato ou resolução de contrato administrativo.

Além disso, a sanção disciplinar aplicada ao denunciante em até dois anos após a denúncia presume-se abusiva. Sendo que, caberá prova em contrário para demonstração de que os atos acima não foram motivados por denúncia interna, externa ou divulgação pública.

Forma e admissibilidade da denúncia interna

A Directiva utiliza o verbo poder ao estabelecer a precedência dos canais de denúncia interna, o que indica ser facultativo ao denunciante reportar internamente nos canais das empresas antes de trazer sua denúncia aos canais externos das autoridades. Ocorre que, a nova lei prevê como requisito de seguimento da denúncia interna que o denunciante seja informado de forma clara e acessível dos requisitos, autoridades competentes e a forma e admissibilidade da denúncia externa (precedência entre os meios de denúncia) com previsão de o denunciante poder recorrer a canais de denúncia externa apenas quando:

  • a) Não exista canal de denúncia interna;
  • b) O canal de denúncia interna admita apenas a apresentação de denúncias por trabalhadores, não o sendo o denunciante;
  • c) Tenha motivos razoáveis para crer que a infração não pode ser eficazmente conhecida ou resolvida a nível interno ou que existe risco de retaliação;
  • d) Tenha inicialmente apresentado uma denúncia interna sem que lhe tenham sido comunicadas as medidas previstas ou adotadas na sequência da denúncia nos prazos previstos; ou
  • e) A infração constitua crime ou contraordenação punível com coima superior a 50.000 euros.

Divulgação pública da informação

Sob pena de infração relacionada com áreas estratégicas das corporações que não tenham necessariamente correlação direta com a infração em questão (segredos comerciais), o denunciante só pode divulgar publicamente informações quando:

  • a) Tenha motivos razoáveis para crer que a infração pode constituir um perigo iminente ou manifesto para o interesse público, que não possa ser eficazmente conhecida ou resolvida pelas autoridades competentes, atendendo às circunstâncias específicas do caso, ou que exista risco de retaliação inclusivamente em caso de denúncia externa; ou
  • b) Tenha apresentado uma denúncia interna e uma denúncia externa, ou diretamente uma denúncia externa nos termos previstos na presente lei, sem que tenham sido adotadas medidas adequadas nos prazos previstos.

A pessoa que, fora dos casos previstos acima, der conhecimento de uma infração a órgão de comunicação social ou a jornalista não beneficia da proteção do denunciante, sem prejuízo das regras aplicáveis em matéria de sigilo jornalístico e de proteção de fontes.

Contraordenações e Coimas

A nova lei estabelece duas categorias: muito graves, que são puníveis com coimas de 1000 a 250.000 euros; e graves, que são puníveis com coimas de 500 até 125.000 euros, sendo que em ambos os casos tanto a tentativa quanto a negligência serão puníveis com coimas reduzidas pela metade.

Conservação da Denúncia

A nova lei fez muito bem de estabelecer o prazo de conservação dos documentos e registros referentes às denúncias recebidas. As entidades e autoridades competentes por receber e tratar as denúncias deverão conservar tais registros pelo período de cinco anos e, independente desse prazo, durante a pendência de processos judiciais ou administrativos correlatos.

No avanço nos regimes de proteção ao denunciante, temos i) os Estados Unidos que contam com diversos projetos de lei em tramitação para a melhoria do quadro regulatório; ii) o Brasil que desde 2015 desenvolveu estudos legislativos e técnicos no setor; iii) o Canadá que atualmente pretende atualizar sua estrutura legal para denúncias que está desatualizada e fora de compasso com as melhores práticas reconhecidas internacionalmente. Segundo o governo canadense, as deficiências mais graves são a falta de proteção para denunciantes dos setores público e privado.

Nos resta agora, aguardar o avanço de um regime amplo e global de proteção ao denunciante, sendo que na Europa se espera o adequado cumprimento por parte das empresas e autoridades, afinal de contas, como dito por Montesquieu, boas leis existem em diversos países e lugares, mas, caso não haja sua apropriada execução, a consequência é a corrupção da República.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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