Anemia: identificar, tratar e não desvalorizar

Nem sempre dá sinal. Pode ser silenciosa e passar despercebida. Afecta mais as mulheres do que os homens e está associada a sintomas que são confundidos com o stress do dia a dia e facilmente desprezados. A anemia é fácil de diagnosticar e de tratar, é uma condição sub-diagnosticada e é urgente implementar estratégias que tornem o sangue de cada pessoa “valioso”.

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Quem o defende é o Anemia Working Group Portugal (AWGP) – Associação Portuguesa para o Estudo da Anemia que acaba de ver aprovada uma resolução na Assembleia da República – com data de 29 de Outubro – sobre a proposta da implementação do Dia Nacional da Anemia, a 26 de Novembro. A luta tem anos, mas a concretização já esteve mais longe. De qualquer modo, o AWGP assinala sempre a efeméride com algumas iniciativas. Afinal, “a anemia é muito prevalente. Um em cada cinco portugueses adultos sofre de anemia, o que representa 20% da população adulta”, revela João Mairos, médico ginecologista e obstetra que assume ainda o cargo de presidente do AWGP.

O estudo Empire, realizado em 2013, envolveu 8000 pessoas em Portugal e conclui que “84% dos doentes não sabe que tem anemia e, de estes, só 2,8% é que estão a ser tratados”. Este é um estudo fidedigno e representativo da população portuguesa e que foi mais além do que a Organização Mundial de Saúde que estimava que a prevalência nacional seria menor. “É uma situação muito escondida”, explica o presidente do AWGP, daí que seja essencial alertar, não só a população, como os médicos assistentes. “As análises sanguíneas que habitualmente se fazem são muito corriqueiras. O mais básico é o hemograma que permite dar uma ideia geral, mas o AWGP tem vindo a tentar sensibilizar os médicos a aderir à prescrição de uma análise que mede a quantidade de ferro existente”, afirma. E, acrescenta, que “esta é uma análise relativamente barata e, juntamente com o hemograma, confere uma ideia muito aproximada e certa da anemia e da sua causa”.

Existem alguns factores e grupos de risco para o desenvolvimento da anemia. Por exemplo, as mulheres em idade fértil podem ter uma predisposição natural devido às hemorragias mensais decorrentes da menstruação e que podem originar perda de ferro. “No estudo que fizemos, concluímos que nas mulheres mais jovens, entre os 18 e os 24 anos, a prevalência de anemia é maior e ronda os 30%. Além das perdas de sangue pela menstruação, alimentam-se mal. Nós valorizamos muito a nossa dieta mediterrânica e temos muito orgulho na nossa oferta gastronómica, mas, muitas vezes, as pessoas comem fast food ou comida processada e não incorporam o ferro de que precisam para combater a anemia”, revela João Mairos.

A anemia é uma situação clínica que resulta da diminuição do número de glóbulos vermelhos no sangue ou do conteúdo da hemoglobina para valores inferiores aos considerados normais para a idade, género e etapa de crescimento. Por outro lado, o ferro “é a base da construção da molécula da hemoglobina e que está presente nos glóbulos vermelhos que, quando reduzida, origina esta doença. O ferro funciona como ‘uma pilha’ e entra na constituição da hemoglobina para captar oxigénio para conferir a energia para realizar as funções da vida”, salienta o médico ginecologista. Mais de 50% das anemias são causadas por falta de ferro e os outros 50% devem-se a hemorragias, doença crónica ou a doença oncológica. “A maior parte das pessoas que tem anemia por carência de ferro perdem sangue, alimentam-se mal ou tem alguma dessas doenças”, destaca João Mairos.

Deficiência de ferro e anemia

A definição de anemia baseia-se nos valores de referência, como já abordado neste artigo, mas quando o ferro diminui, as reservas ficam tão baixas que podem causar sintomas mais ou menos explícitos: cansaço, falta de energia, cabelo e unhas quebradiças, falta de concentração, irritabilidade, entre outros. A sintomatologia está associada a ambas as condições. “Costumo dar um exemplo às minhas doentes e que é o seguinte: ter anemia é como ter um supermercado com as prateleiras cheias, mas o armazém completamente vazio. Se mais pessoas forem comprar o mesmo produto, há ruptura de stock porque não há forma de o repor.” João Mairos recorre a esta analogia para explicar que a anemia é como a prateleira do supermercado. Está a funcionar, mas se houver uma exigência um pouco maior porque a pessoa faz mais esforço, engravida ou porque perde um pouco mais de sangue, desenvolve anemia e não consegue repor as perdas.

Depois de a baixa de ferro serem identificadas, é feita uma prescrição de ferro, habitualmente, um comprimido por dia, em jejum. “Geralmente, o doente faz esta medicação durante dois meses e, ao final deste tempo, volta a repetir as análises ao sangue, momento em que já é provável que os valores estejam repostos. É muito simples tratar.” É preciso perceber as causas da anemia que, por sua vez, são variadas. “As pessoas têm problemas de recto, do cólon ou hemorróidas e as mulheres podem ter miomas ou sangrar um pouco mais do que o habitual.” De nada adiantará repor o ferro se a causa do problema não for devidamente tratada. “Só assim se consegue devolver qualidade de vida às pessoas”, salienta João Mairos.

 As doenças oncológicas originam anemias mais graves e existe ainda uma pequena percentagem de doenças hereditárias, mais raras, mas, a maioria das vezes, estamos a falar de doenças simples com tratamento e resolução adequada. Ainda assim, refere o ginecologista, “é importante ter a percepção de que as pessoas com anemia têm maior taxa de mortalidade e mais morbilidade, um tempo de internamento hospitalar maior e são mais vezes admitidas nos cuidados intensivos, com os impactos que estas situações trazem em termos de custos de saúde”, revela o presidente do AWGP que corrobora estes próprios factos enunciados pela OMS.

Tornar o sangue “valioso”

Além do alerta para a elevada prevalência de anemia e da sensibilização para a criação do Dia Nacional da Anemia que João Mairos espera que “esteja para breve”, o AWGP tem trazido para a discussão, a necessidade de implementar o PBM - Patient Blood Management que resulta de uma resolução da OMS. “Estamos a fazer um esforço suplementar agora para tornar o sangue de cada doente tão valioso que se consiga fazer tudo para que ele não tenha de ser submetido a uma transfusão. Esta parece uma ideia simples, mas é complexa do ponto de vista da organização porque envolve vários actores, desde o Ministério da Saúde, a directores de hospitais, aos médicos nos seus consultórios e a todos os agentes de saúde”, explica o médico ginecologista.

Uma grande percentagem das pessoas operadas em cirurgia major tem anemia, sublinha. “Segundo dados da OMS, as grandes cirurgias são efectuadas em 20 a 40% dos doentes com anemias não corrigidas. Como é que posso querer implementar o PBM se não corrigir a anemia anteriormente”, questiona. Em 2017, o AWGP, em parceria com a EXIGO, promoveu um estudo com o objectivo de avaliar o impacto na saúde pública e nos custos do Serviço Nacional de Saúde relativos à implementação de um programa de PBM a nível nacional. Este estudo contemplou um modelo matemático de análise de decisão, o qual permitiu comparar dois cenários: “prática clínica actual” e “após implementação de PBM”. Com esta projecção, o AWGP/EXIGO concluiu que a implementação do PBM conferiria uma poupança anual de 67,7 milhões de euros por ano em Portugal. “Conseguiríamos fazer transfusões de sangue a menos 50% dos doentes e baixar os internamentos em 10%. Num SNS já tão debilitado com a pandemia de Covid e outros problemas, baixar 10% de internamentos seria algo excepcional. Estamos a tentar colocar o doente no centro e mobilizar todos os agentes de saúde para que se consiga valorizar, ao máximo, o sangue de cada um”, sublinha. Os programas-piloto já existentes em algumas zonas do país têm sido realizadas em hospitais e vêm reforçar o quão relevante são a detecção precoce e o tratamento da anemia para diminuir as perdas de sangue.

Para assinalar o Dia Nacional da Anemia, o AWGP vai realizar rastreios de anemia e ferropénia junto à Selecção Nacional A de futebol feminino e participar em webinares destinados a profissionais de saúde.