Pode um homem hetero e branco falar sobre feminismo e racismo? Diogo Faro diz que sim

O comediante e cronista Diogo Faro tem um novo livro, Processo de Humanização em Curso, em que quer fazer pensar em temas sérios como o racismo, as desigualdades sociais e a discriminação. “É o meu processo de crescimento enquanto homem.”

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Rui Gaudencio/Arquivo

O desafio chegou ainda antes da pandemia, sugerido pela editora Penguin Random House Portugal​. A ideia foi ganhando forma e um ano e meio depois, na sexta-feira, 8 de Outubro, foi na Casa do Capitão, em Lisboa, entre cervejas e ao som de Celulitite, de Conan Osíris, que Diogo Faro reencontrou amigos, colegas e fãs para assistir à apresentação do seu novo livro, Processo de Humanização em Curso. 

São cerca de 220 páginas em que o comediante de 34 anos, mais conhecido pela alcunha Sensivelmente Idiota, aborda, muitas vezes sarcasticamente, temas complexos, como o neoliberalismo, a desigualdade económica, fascismo, a comunidade queer e até as alterações climáticas. Para o autor, que já tinha escrito Somos Todos Idiotas e Na Boa! O segredo português para a felicidade, esta nova obra foi até à data a mais complicada de desenvolver. “Na verdade, eu não inventei nada de novo, estas ideias já existiam, mas não basta escrever um livro a dizer ‘o racismo realmente é muito mau’, não é? Tive de estudar, ler uma data de coisas, ver imensos documentários e falar com muitas pessoas”, conta o cronista ao P3.

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Mariama Injai, Guada e Daniel Oliveira marcaram presença na apresentação do livro Penguin Random House Portugal

Não se trata de um manual de boas práticas a impingir a toda a humanidade, diz, mas antes uma compilação de ideias para o mundo ser “um bocadinho menos feio”. “Tal como diz o título, isto é o meu processo de crescimento enquanto homem em tentar perceber o que é o feminismo, o que é o racismo, sobre o que deve ser [estar na pele de] uma pessoa negra, ou uma mulher ou uma pessoa LGBT — eu não sei, nem nunca vou saber, mas podemos sempre fazer um exercício empático de tentar chegar a essas pessoas, aprender com uns e passar para outros.”

Para além dos grandes nomes clássicos, como James Baldwin e Angela Davis, Diogo Faro conta que se inspirou e informou sobretudo junto das pessoas que o rodeiam. “Por exemplo, foi a ouvir as mulheres à minha volta, como as minhas melhores amigas, as minhas familiares, que comecei a perceber que elas são assediadas constantemente. Como isto não me acontece, parece uma realidade à parte, mas no entanto estava ao meu lado”, relata. “Como nunca fui discriminado pela minha orientação sexual ou pelo meu tom de pele, acabava [por estar], sem intenção de ser um gajo parvo, um pouco alheado das coisas”. 

Guadalupe Amaro ou simplesmente Guada, mulher transgénero, e Mariama Injai ou AfroMary, activista negra, são algumas das “pessoas reais” que Faro teve em conta na construção deste livro e que também marcaram presença na apresentação do livro.“Pelas suas características identitárias, elas têm muitas mais barreiras à partida, por exemplo, até no acesso aos meios de comunicação. Não há normalmente pessoas trans a falar na televisão e são raríssimas as pessoas negras”, comenta o comediante, que quer usar a sua plataforma para dar voz a quem geralmente não tem espaço na agenda mediática. 

Para Mariama, que cresceu em Mangualde, uma cidade do interior portuguesa, em que a maioria dos habitantes são brancos, o racismo sempre foi uma realidade bastante presente, mesmo quando ainda nem sabia o que significava, como contou durante a sessão. “Lembro-me de toda a gente olhar para mim na escola primária e apontar para a preta. Desde aí comecei a perceber que a minha cor representava muitas coisas para as pessoas”. Hoje, é Mariama quem aponta o dedo à falta de representação: “Se tu não te vês na televisão, nas revistas, em lado nenhum, começas a aprender que se calhar não é uma possibilidade para ti, que este lugar não é para mim.” 

Também Guada relembrou que a primeira vez que ouviu falar de pessoas como ela foi quando, num programa de televisão, exibiram uma mulher trans como um “adereço”. “Eu não sabia mesmo que existiam outras como eu”, admite, “é essa a manifestação tão explícita da exclusão que nós sofremos”. 

O jornalista e comentador Daniel Oliveira foi o terceiro convidado para a apresentação do livro. Apesar de representar o “homem branco genérico”, como descreveu Diogo Faro, o colunista acrescentou ainda que “a intervenção política é sempre uma forma de superação da nossa própria biografia”. “Estas causas são todas a mesma causa e da mesma causa podemos todos falar”, concluiu.

Apesar de já estar disponível para compra, Processo de Humanização em Curso é uma obra que nunca estará realmente concluída, ressalva Diogo Faro. “É, na verdade, um processo que nunca acaba. Estou todos os dias a aprender e vou continuar a falhar, mas já que estou aqui, posso tentar fazer do mundo um sítio mais justo para todos.”

Texto editado por Amanda Ribeiro

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