Palmira: nome de avó e de lugar para pensar a mulher

Em estreia no Festival Materiais Diversos, Palmira é uma criação de Anabela Almeida e Sara Duarte, a partir de conversas e de uma pesquisa focadas nas heranças familiares e sociais. Para ver esta sexta e sábado na Galeria José Tagarro, no Cartaxo.

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Duas mulheres (Anabela Almeida e Sara Duarte), vestidas de verde, sentadas nas suas cadeiras, de olhos cobertos e rodeadas de natureza coberta de uma massa branca, uma natureza escondida. Partilham histórias de sonhos uma com outra: uma sala cheia de pessoas sem rosto, onde se destaca uma Alice com uma saia grande, debaixo da qual começam, de súbito, a sair bebés; mulheres que, tal como elas, conversam uma com a outra e comem flores; um som terrível vindo das entranhas da terra, como se o planeta exigisse um abanão.

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Duas mulheres (Anabela Almeida e Sara Duarte), vestidas de verde, sentadas nas suas cadeiras, de olhos cobertos e rodeadas de natureza coberta de uma massa branca, uma natureza escondida. Partilham histórias de sonhos uma com outra: uma sala cheia de pessoas sem rosto, onde se destaca uma Alice com uma saia grande, debaixo da qual começam, de súbito, a sair bebés; mulheres que, tal como elas, conversam uma com a outra e comem flores; um som terrível vindo das entranhas da terra, como se o planeta exigisse um abanão.

“Viemos para aqui para pensarmos na nossa vida de mulheres”, dirá uma delas pouco depois, já de olhos disponíveis para o mundo. Este lugar pode ser Palmira, histórica cidade-oásis síria, aqui evocada enquanto lugar para onde alguém se pode retirar para repousar e buscar um espaço para (se) pensar. Palmira é também uma cidade de ruínas, imagem dos avanços e recuos de uma civilização, dos retrocessos que todos os passos maiores sempre levam consigo. Mas Palmira era também o nome de uma das avós de Anabela Almeida, uma avó minhota, crescida em Arcos de Valdevez e que, nos anos 40/50, soube construir uma “vida alternativa”. Mãe de dois filhos “ilegítimos”, não correu a casar-se em busca da reparação da sua reputação, nem se deixou dominar por ela. Criou os dois filhos, trabalhou como costureira e “foi sempre muito independente e autónoma”, lembra Anabela. “Naquela altura, foi alguém que seguiu outro caminho ou procurou outra possibilidade.” Ou, como diz em palco, Palmira “costurou uma vida à sua medida”.

Foi a história de Palmira e as anteriores criações das duas actrizes e encenadoras e conduzir a pesquisa que se seguiria para a preparação do espectáculo que apresentam em estreia sexta-feira e sábado na Galeria José Tagarro, Cartaxo, no âmbito do Festival Materiais Diversos. Foi, portanto, essa história e empurrá-las para uma série de conversas (graças à pandemia, os debates mais alargados tiveram de ser reduzidos a conversas mais restritas) acerca das relações entre homem e mulher em contextos preferencialmente longe dos grandes centros urbanos (a excepção foi o Porto, tendo efectuado trabalho de campo em Paredes de Coura, Aljezur, Monchique, Cartaxo, Minde e Alcanena). “A nossa ideia era a de focarmo-nos não tanto em histórias de vida individuais, mas partilhar vivências que não fossem tão particulares do percurso de cada um”. Só que, à medida que avançavam nessas entrevistas em que desafiavam as suas interlocutoras (sozinhas ou em casal) a descreverem o seu quotidiano, esses relatos foram-se misturando com as reflexões e as outras leituras que faziam em paralelo, ao mesmo tempo que registavam o quanto as assimetrias em homens e mulheres se mantêm muito para além do aceitável – quer em ambiente laboral, quer em ambiente doméstico.

Daí que Anabela e Sara façam um caminho para trás, dizendo-se “herdeiras involuntárias da sociedade que nos rodeia” e questionem o que é isto de “ser natural” ou da “naturalidade” com que certas coisas acontecem. Coisas como o trabalho doméstico, invisível e não remunerado, que as duas executam em palco de sorriso artificialmente rasgado, de faca na mão e com clara vontade de cortar às postas este cliché do universo feminino. Às suas entrevistadas, perguntavam sempre o que significava para elas “cuidar”. Cuidar de quem, como. “As questões eram todas muito genéricas”, explica Sara Duarte. “Nunca colocávamos, à partida, questões masculino-feminino, homem-mulher. O que acontece é que tudo isso surgia depois no discurso, quando o género se tornava muito claro, e aí tentávamos ir mais fundo.” E quando iam mais fundo, aquilo que descobriam era que a desigualdade fazia parte do dia-a-dia, muitas vezes sem ser questionada, quase sempre assumida como uma herança natural. E assim desenterram vozes e relatos de mulheres a quem a oferta de um livro de receitas reduzia à sua condição de cozinheira para a família, de mulheres sem tempo para pensarem em si, demasiado ocupadas a amparar as vidas à sua volta – e que dizem coisas como “Não preciso de nada, só preciso que eles estejam bem”.

Questionando aquilo que carregam daquelas que as antecederam, de forma íntima ou longínqua, ou aquilo que são enquanto produto de uma construção social dura de contrariar, Anabela Almeida e Sara Duarte erguem um espectáculo que avança lentamente, embalado pela música de Ricardo Freitas e Ricardo Ribeiro, e se abre, entre silêncios e cenas de carga apenas visual, com uma cadência que convida à reflexão. Mas que lembra também o quão lentas são as transformações colectivas.