Neurodiversidade: uma década atípica

No 10.º aniversário do P3, estendemos o Megafone a dez vozes para falarem de dez causas. O que mudou numa década? Como será a próxima? A investigadora Sara Rocha considera que o mundo ficou mais atento e com mais espaço para vozes autistas — mas há muito por fazer.

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Luisa Denu/ Unsplash

O que veio revolucionar o nosso entendimento do autismo foi a Internet. A partilha de conhecimento proveniente de uma globalização tão rápida e a possibilidade de autistas, mesmo não falantes, comunicarem e partilharem as suas experiências através da escrita ou por outros meios permitiu que cada vez mais adultos compreendessem as suas próprias experiências. Hoje existe um mundo online de activistas #ActuallyAutistic a partilhar o que realmente sentem e vivem.

Em 2013, os critérios de diagnóstico do autismo foram alterados, criando o agora espectro do autismo. Com critérios mais definidos, foi mais fácil organizar uma comunidade em que deixamos de aceitar que falem por nós.

Um dos exemplos é a Judge Rotenberg Center, centro de terapia de análise comportamental aplicada (ABA — Applied Behavior Analysis, em inglês) nos Estados Unidos, que utiliza choques eléctricos na pele de crianças e adultos para, segundo eles, evitar que se agridam. No entanto, já autistas foram hospitalizados por não tirarem o casaco ou não fazerem o que lhes mandam imediatamente. Andre McCollinsum, cujo vídeo foi disponibilizado online, é um destes casos: acabou por dar entrada no hospital. Apesar das repreensões da ONU e de vários protestos de autistas, incluindo sobreviventes, apenas em 2020 a Food and Drug Administration (FDA) ordenou a suspensão da prática. Após uma suspensão temporária, o protesto de pais e de especialistas que trabalham no centro fez com que voltasse a ser utilizado.

Com isto não critico os pais, que muitas vezes não sabem que a técnica é mais dolorosa do que um taser, e quase fatal. Critico a prática comum de ignorar as vozes de pessoas autistas e/ou com deficiência intelectual, por acharem que não temos competência para compreender as terapias utilizadas. E a ideia de que tudo será melhor do que ser autista facilita qualquer intervenção, mesmo que nunca a fizessem noutra criança sem deficiência. Uma desumanização e roubo do empoderamento e da autonomia corporal, assim como a descredibilização da nossa capacidade cognitiva e de decisão.

No entanto, não desistimos. É com o apoio de muitas organizações, de pais e especialistas que reconhecem a importância do empoderamento e da ciência do ponto de vista autista, que, aos poucos, vemos o impacto das nossas vozes.

Recentemente foi lançado um estudo por Simon Baron-Cohen, que pedia 10.000 voluntários para investigar como ajudar os autistas a terem uma melhor qualidade de vida e apoio. O Spectrum10k foi, no entanto, encontrar cepticismo na comunidade, porque, quando se inscreviam, os voluntários concordavam em disponibilizar o seu ADN, assim como qualquer informação sobre o mesmo, para futuros estudos. Apesar de sabermos que o autismo é genético, é um pouco mais complicado do que do isso, visto ainda hoje não sabermos para que servem e como interagem todos os genes.

Após os autores do Spectrum10K se defenderem e acusarem os activistas de se basearem em teorias de conspiração, os pormenores do estudo foram partilhados online. Um dos parceiros é a antiga Cure Autism Now, associação que procurava curas, boicotava vacinas e falava em prevenção de autismo. Houve inclusive a tentativa de desenvolvimento de testes de rastreio na gravidez, para possibilitar o aborto em caso de autismo. Por fim, os responsáveis pelo estudo admitiram reavaliá-lo e consultar autistas para garantir que o mesmo vá ao encontro do que a comunidade realmente precisa. É uma grande vitória, que há dez anos não teríamos hipótese de ter, pelo baixo número de autistas em posição para realmente alterar a forma como a nossa condição é estudada. Houve, apesar do final positivo, uma tentativa de descredibilização de activistas, algo extremamente comum que ocorre sempre que lutam por algo. “São menos autistas” é um argumento comum, que se desdobra em “Não podem falar pelos mais autistas”, o que faz com que as vozes de diferentes diversidades funcionais sejam descredibilizadas e continuemos com verdadeiros crimes contra a humanidade a acontecer em pleno 2021.

Actualmente, cerca de uma em 54 crianças está no espectro do autismo, ou seja, 1,9% da população mundial. Na última década, também a proporção entre homens e mulheres autistas passou de 10:1 para 3:1, e com novos estudos a baixar ainda mais este número. Isto corresponde a 200 mil mulheres não diagnosticadas no Reino Unido. Em Portugal, penso que devem ser mais.

“Se não foram diagnosticados até agora, provavelmente não precisam”: já ouvi bastante esta frase. Sabemos hoje que autistas adultos têm nove vezes mais probabilidade de tentar suicídio do que não autistas. Este valor sobe para 28 vezes em crianças. Distúrbios alimentares, ansiedade, depressão e muitas outras dificuldades acrescem quando não é feito o diagnóstico e ficamos anos e anos sem compreender as nossas dificuldades.

No presente, continuamos a lutar pelo lançamento de programas de apoio aos autistas e suas famílias na educação, saúde e emprego. Continuamos a lutar contra profissionais que dizem: “Não pode ser autista, porque fala.” Ou: “Não tem cara de autista.” Tentamos, agora pela Associação Portuguesa Voz do Autista, primeira associação de self-advocacy em autismo, promover grupos de apoio a adultos, projectos de empoderamento e autonomia corporal e de apoio à auto-estima dos autistas em Portugal.

No futuro, esperemos que todas as associações de autismo incluam autistas na sua constituição. Qualquer minoria deve ter o leme de decisões da sua comunidade, o que de momento ainda não acontece, e as organizações sem qualquer autista muitas vezes recebem bastante mais financiamento. A inclusão de autistas em consultoria e desenvolvimento de projectos de acessibilidade é urgente, quando o entendimento de acesso passa praticamente apenas pelo acesso físico a edifícios. Como autistas, precisamos também de acesso sensorial. Alguns autistas são extremamente sensíveis a sons, cheiros, luzes, e os supermercados e locais públicos com música e luzes brilhantes levam a que um autista adulto tenha dificuldades de acesso e acabe por se isolar mais e ser menos independente.

O mundo ficou mais atento e com um pouco de mais espaço para vozes autistas, como este texto. Muito foi feito, e mais ainda temos a fazer. Que venha a próxima década.

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