Velo-city 2021: é preciso mover as pessoas e não os veículos

A conferência Velo-city 2021 já começou e, logo no primeiro dia, ficou bem claro que só com cidades mais seguras e inclusivas se conseguirá a mudança de paradigma necessária para que o foco seja colocado nas pessoas e não nos veículos.

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Leonor Patrocínio / Dário Paraíso
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O maior evento mundial dedicado à mobilidade em bicicleta – o Velo-city 2021 - está a decorrer em Lisboa, entre os dias 6 e 9 de Setembro, e muitos foram os tópicos abordados no primeiro dia por alguns dos nomes mais importantes na área a nível mundial.

“A diversidade em bicicleta, em Lisboa, significa maior democracia”, começou por afirmar a jornalista Catarina Carvalho, responsável por moderar a sessão de abertura da conferência que, nas suas palavras, tem como objectivo “construir cidades melhores”. Empenhados neste processo estão obviamente todos os participantes no evento: cerca de 750 presentes fisicamente e mais de mil a acompanhar as sessões online, oriundos de 45 países e com interesse em ouvir o que os 30 oradores convidados têm a partilhar ao longo dos quatro dias sobre diversidade em bicicleta, ciclismo e crise climática, entre tantos outros temas.

Presente na sessão de abertura, subordinada ao tema geral do evento - “Diversidade em bicicleta” - esteve Miguel Gaspar, vereador com o pelouro da Mobilidade na Câmara Municipal de Lisboa, que apontou a necessidade de se adoptarem medidas destinadas a reforçar a sustentabilidade ambiental. “O planeta vai cá continuar, mas para nós estarmos cá no planeta temos de ter condições para isso”, afirmou, dando conta dos objectivos estabelecidos para a cidade de Lisboa, onde 43% das emissões têm origem nos transportes, pelo que “até 2030 essas emissões têm de ser reduzidas em 70%”, explicou. “É um compromisso nosso, queremos dar um passo em frente, mas isso não é possível sem bicicleta”, disse, sublinhando que “quando retiramos os carros das cidades, as pessoas ocupam esse espaço”. Actualmente, as bicicletas ocupam cerca de 0,4% do espaço público em Lisboa e o objectivo é chegar aos 10%, reduzindo o espaço ocupado pelos carros de 50% para 30%, referiu ainda, terminando com uma mensagem destinada a todos os participantes com responsabilidades nas cidades: “Há que devolver as cidades às pessoas.”

Diversidade que dá força

Se é verdade que o mundo mudou nos últimos dois anos, não é menos verdade que os ciclistas também mudaram. E muito. Quem o disse foi Henk Swarttouw, presidente da Federação Europeia de Ciclistas (ECF, na sigla em inglês), que também participou na sessão de abertura. “Andamos mais de bicicleta, percorremos distâncias maiores e usamos bicicletas diferentes, somos mais diversificados em termos de idade, género, origem social e razões por que andamos de bicicleta”, enumerou o responsável, sustentando que “esta diversidade é a nossa força”, pois “quanto mais diversificados tanto mais fortes seremos”. Até porque, como frisou, “quando as pessoas andam de bicicleta são mais felizes”. Por este motivo, defendeu que “precisamos de mais investimento no ciclismo”, nomeadamente através dos planos de recuperação pós-pandemia. Sublinhou ainda a necessidade de mais segurança nas cidades e, a este propósito, questionou a razão por que não se estipula o limite máximo de 30 quilómetros/hora para circular nas cidades.

“Há que mover as pessoas e não os veículos”, enfatizou, salientando a necessidade de se mudar o paradigma em vigor, pois “se a pandemia foi um sprint de 100 metros, as alterações climáticas são a maratona e por tudo isso devemos reduzir as emissões”. “Sabemos que os veículos eléctricos, que ocupam muito espaço e requerem demasiada energia, não são a solução”, explicou, pelo que “fundamentalmente, temos de mudar a nossa mobilidade, temos de mudar as nossas ruas. Se vocês as mudarem, nós viremos”, disse, dando conta ainda que “Portugal está a liderar e a mostrar o caminho”, uma vez que é o maior produtor de bicicletas da Europa.

Liberdade e inclusão

“Há dez anos, as pessoas já se entusiasmavam muito por poder usar a bicicleta na cidade de Lisboa e quando começámos a construir ciclovias seguras, as pessoas ficaram com menos medo”, disse Miguel Gaspar, lamentando que, ainda assim, as mulheres e as crianças ainda estejam em menor número, precisamente por receio de partilhar a via com os automóveis. “O que interessa é que as pessoas tenham liberdade de escolha” e que esta não seja limitada pelo medo, afirmou.

Já para Erion Veliaj, presidente da Câmara Municipal de Tirana (Albânia), “o maior desafio não tem sido construir ciclovias, mas alterar mentalidades”, até porque em causa está aquele que foi até recentemente “um sistema fechado, autoritário, tirano”. Para a mudança, diz contar com a influência dos mais novos: “As pessoas desconfiam sempre dos políticos, mas confiam nas crianças e termos crianças em cada casa a dizer que querem andar na rua de bicicleta é diferente.”

Outra experiência partilhada na reunião foi a de Manuel de Araújo, presidente da Câmara Municipal de Quelimane (Moçambique), que quando concorreu às eleições percebeu que não conseguiria fazer frente aos outros candidatos, que usavam os carros para demonstrar poder económico. Como alternativa, decidiu usar a bicicleta. “Eu ia de bicicleta de casa em casa e pedia às pessoas para votar em mim, o que era até uma forma mais directa de contactar com as pessoas, melhor do que se chegasse de carro, as pessoas na minha cidade não se identificam com isso.” Referiu que o uso da bicicleta estava associado às pessoas pobres, mas, como o presidente da câmara se desloca de bicicleta, isso mudou, acabando a mobilidade por ser uma prioridade do seu mandato: “Tentei desenvolver uma infra-estrutura ciclável no centro da cidade e agora os cidadãos sentem-se incluídos.”

Ao contrário do que se passa em Moçambique, Anni Sinnemäki, vice-presidente da Câmara Municipal de Helsínquia (Finlândia), assume que na sua cidade “quem anda de bicicleta é quem ganha mais”. Mas “não são hippies, são pessoas com poder de compra, bem informadas e que querem mudar a sua cidade”, acrescentou, destacando o que tem norteado a acção política: “Não vamos dar sermões às pessoas para que usem bicicleta, vamos dar-lhes condições para que o façam.”

A terminar a primeira sessão plenária, moderada por Jill Warren, CEO da ECF, também Will Norman, Comissário de Mobilidade em Bicicleta e Pedestre de Londres, deu conta do que tem vindo a ser feito nesta cidade: “As coisas mudaram espantosamente nos últimos 18 meses; o urbanismo táctico, a capacidade de mudar rapidamente e de retirar espaço aos carros para dar às pessoas… as lojas de bicicleta tinham filas à porta e não só devido à pandemia, mas porque as pessoas tinham tirado as bicicletas dos sótãos e estavam a comprar correntes novas; as pessoas viram as ruas com menos trânsito e sentiram-se seguras para usar a bicicleta.” Mas, agora, como impedir que volte tudo atrás? “Deem condições que as pessoas virão”, é a sua resposta, apontando que “64% de todas as deslocações em Londres são feitas de transportes públicos, a andar ou de bicicleta e o objectivo é chegar aos 80%”.

Bicicleta como símbolo da mudança

A segunda sessão plenária do dia tocou num ponto unanimemente considerado crucial: “Políticas climáticas – a nova porta para a mobilidade em bicicleta rumo à recuperação verde”. Para Frans Timmermans, vice-presidente executivo da União Europeia (UE), “a bicicleta é o meio de transporte mais sustentável e devia tornar-se o símbolo da mudança que pretendemos”. Nas suas palavras, o uso da bicicleta “só tem efeitos positivos na saúde, na mobilidade e na qualidade de vida”, pelo que “a revolução ciclista está a caminho”. Referindo-se aos objectivos de sustentabilidade estabelecidos para 2030, afirmou que “esta é uma oportunidade fantástica para a bicicleta” e diz mesmo não perceber “como é que uma cidade se torna neutra em termos climáticos sem a bicicleta”. Para tal, referiu-se aos apoios da UE, nomeadamente, planos de mobilidade e selos de excelência para cidades.

A moderar a sessão, Henk Swarttouw passou de seguida a palavra a João Pedro Matos Fernandes, ministro do Ambiente, que não tem dúvidas que “a bicicleta, com a ajuda da bicicleta eléctrica, é o futuro”. Na sua perspectiva, “é por vaidade que as pessoas usam tanto o transporte individual e por falta de informação”. Embora reconhecendo que a aposta deve ser nos transportes públicos colectivos, admitiu também as limitações que tal opção acarreta, tendo em conta “a fragmentação do território urbano e das nossas vidas”. Resolver esta dificuldade “não dispensa o transporte individual, mas é uma tolice pensar que esse transporte individual é o automóvel. Não é, não pode ser”, rematou, apontado a bicicleta e a bicicleta eléctrica como solução. Além disso, frisou que “Portugal tem tudo a ganhar” em investir neste ramo, desde logo por “sermos dos maiores países produtores de bicicletas e bicicletas eléctricas da Europa e do mundo”, disse, reforçando a mensagem anteriormente deixada por Henk Swarttouw.

Na sessão foi também transmitida uma mensagem de Julie-Anne Genter, deputada neozelandesa do Partido Verde. “Andar de bicicleta para mim é fundamental para responder às alterações climáticas”, começou por afirmar, mas admitindo a necessidade de “uma autêntica revolução nas nossas cidades” e lamentando o facto de, nos últimos anos, a Nova Zelândia ter dado prioridade aos carros. Julie-Anne Genter defendeu a importância de apoios para as famílias poderem adquirir bicicletas eléctricas, acreditando que esse debate possa vir a acontecer em breve. “Temos de priorizar o nosso orçamento para os transportes sustentáveis nas nossas cidades, para que sejam as opções mais baratas, mais simples e é assim que vamos conseguir a nossa revolução, não só para vencer a crise climática, mas também para termos cidades mais felizes e saudáveis”, concluiu.

Mais apoios para os cidadãos

Como é que o ciclismo se insere na recuperação verde? Esta foi uma das perguntas lançadas por Henk Swarttouw aos vários elementos do painel de discussão, todos representantes de associações de cidadãos ciclistas. Rebeca Peters, vice-presidente da German Cyclists’ Association, destacou a importância de “termos mais tipos de bicicletas acessíveis a mais tipos de pessoas”, mas constatou que “precisamos de mais bicicletas e de financiamento para tudo isto”. Por seu turno, Esther van Garderen, CEO da União Holandesa de Mobilidade Ciclável, reforçou a ideia deixada pelo ministro português do Ambiente: “A bicicleta devia ser o símbolo da mobilidade livre de carbono.” Nesse sentido, e referindo-se aos apoios existentes para aquisição de automóveis eléctricos e híbridos, afirmou que “gostaria de ver parte do dinheiro retirado dos carros para ir para as bicicletas”.

Já em França, a situação é diferente, segundo Olivier Schneider, presidente da Fédération des Usagers de la Bicyclette, segundo o qual, “em França, andar de bicicleta tornou-se um dos assuntos mais importantes quando se fala no tema do clima”. A este propósito, contou que, há quatro anos, foi feito um primeiro projecto com 3 milhões de euros para criar infraestruturas de estacionamento de bicicletas e agora estão em causa 300 milhões de euros para as diversas dimensões associadas à mobilidade ciclável.

Em contrapartida, Áron Halász, vice-presidente do Hungarian Cyclists’ Club, assume-se como “um pouco pessimista no que diz respeito à crise climática”. “As pessoas precisam de opções para todos os dias que sejam fáceis de usar”, considerou, lembrando que “é preciso mais investimento para infraestruturas de bicicletas, subsídios para comprar e benefícios fiscais para que as pessoas mudem de ideias, porque estão a voltar-se outra vez para os carros, o que é uma opção muito má, mas acontece porque na Hungria os carros em segunda mão são muito baratos”.

Perspectiva diferente tem Klaus Bondam, director da Danish Cyclists’ Federation, para quem não há dúvida de que as coisas têm mudado muito nas últimas décadas no que diz respeito à utilização da bicicleta. “Participei em 2008 no primeiro congresso sobre o tema onde foi feita uma sugestão à UE e agora temos os comissários todos a trabalhar em conjunto para isto, tem sido interessante ver as enormes mudanças”, disse, reforçando que “talvez a revolução já tenha começado”. Numa etapa diferente estão ainda os croatas, segundo Janko Vecerina, presidente da Sindikat Biciklista, segundo o qual “na Croácia estamos ainda a provar ao governo que a bicicleta também pode ser um meio de transporte e não apenas uma opção recreativa. A Croácia tem muito turismo e nós já temos ciclismo turístico, mas não orientado para a vida de todos os dias”, esclareceu, pelo que são necessários “subsídios para a aquisição de bicicletas e bicicletas eléctricas para irmos ao encontro desta sociedade verde que tanto queremos”, concluiu.

Mobilidade ciclável debatida em todas as dimensões

Além das duas sessões plenárias, um total de doze temas esteve ainda em debate ao longo do primeiro dia do Velo-city 2021, com várias sessões a decorrer em simultâneo. “A diversidade de ciclistas”, “Diferentes formas de partilhar bicicletas”, “Urbanismo táctico e ciclovias pop-up: do temporário ao permanente”, “Pedalar fora da pobreza dos transportes”, “Colmatar a lacuna de género no ciclismo”, “Acção climática agora” ou “Covid-19: o desenvolvimento da mobilidade em bicicleta & advocacia durante a crise”, foram alguns dos muitos temas debatidos, com partilhas de experiências oriundas de diversos pontos do mundo e envolvendo todos os oradores em conversas animadas e participadas.