Grande parte do CO2 produzido em Portugal tem “Imunidade diplomática”: O Tratado da Carta da Energia

Dada a enorme barreira que este tratado impõe para a implementação de políticas públicas em relação à indústria de combustíveis fósseis, é urgente que Portugal abandone, com a maior brevidade e de preferência de forma coordenada, este obsoleto Tratado anti-clima.

Como devia ser do conhecimento comum, mas infelizmente não é, o Tratado da Carta da Energia (TCE) é um dos maiores entraves à redução de emissões de gases de efeito de estufa. Ele atribui, através de um mecanismo de arbitragem entre investidores e Estado (ISDS), indemnizações proibitivas se o Estado prejudicar os lucros de um investimento em energia com origem num dos países signatários. Ele tem o efeito prático de impedir que o Estado tome ações que combatam a poluição do ambiente e as alterações climáticas por medo de ter que pagar pesadas indemnizações ou milhões de euros em custos de litigância. Além disso, decisões destes tribunais arbitrais sobrepõem-se às dos tribunais nacionais. Ou seja, na prática impede o Estado de criar legislação, os tribunais de julgar de acordo com as leis nacionais e vários outros tipos de ações legítimas, como não impedir greves, que de alguma forma diminuam a expectativa de lucro dessas empresas. No fundo, é uma forma de imunidade diplomática para empresas estrangeiras.

Mas, ao certo, que investimentos são estes? A Investigate Europe (IE) analisou o valor da infraestrutura fóssil na Europa protegida pelo TCE com base nos dados da “Global Energy Monitor” e “Oil Change International” e concluiu que, no total, valem aproximadamente 334,6 mil milhões de euros. Vale a pena frisar que este valor se refere aos investimentos e não aos lucros esperados, que podem corresponder a indemnizações muito superiores. Ainda assim, este valor é muito elevado. É o equivalente a mais de dois anos de despesas da Comissão Europeia, incluindo subsídios agrícolas e fundos estruturais.

A parte correspondente a Portugal de investimentos em combustíveis fósseis determinada pela IE é de 400 milhões de euros, o que corresponde a 39 euros per capita. Este é um valor relativamente baixo comparativamente com os outros países europeus. Isto deve-se tanto aos incentivos recentes a energias renováveis como ao facto de empresas importantes como a EDP, a REN e a Galp não serem contabilizadas pela IE como investimentos protegidos pelo TCE. Mas estas empresas também são protegidas por mecanismos ISDS, seja através do TCE, ou através de acordos bilaterais de investimento (BIT).

Os investimentos em combustíveis fósseis protegidos pelo TCE identificados pela IE são as centrais termoelétricas da Tapada do Outeiro, em Matosinhos, e do Pego, em Abrantes. Estas centrais são detidas em proporções diferentes pela empresa espanhola Endesa e pela franco-japonesa Trustenergy. A Trustenergy é um consórcio entre a francesa Engie e a japonesa Marubeni em partes iguais. Tanto a Espanha como a França e o Japão fazem parte do TCE.

O mais poluente destes investimentos é a central Pego I a carvão. Foi construída entre 1987 e 1995 pela EDP e foi vendida à Tejo Energia em 1993. A Tejo Energia é um consórcio composto em 56,25% pela Endesa e 43,75% pela Trustenergy. A central tem uma capacidade de 628 MW, o que corresponde à possibilidade de emitir cerca de 619 toneladas por hora de CO2. Felizmente perspetiva-se que a central a carvão irá fechar com o final da licença de atividade a 29 de Novembro deste ano com o acordo dos investidores. Para esta decisão (como para a decisão do encerramento da central a carvão de Sines da EDP em Janeiro deste ano) terá contribuído o facto de os contribuintes portugueses e europeus disponibilizarem dezenas de milhões de euros do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) e do Fundo para uma Transição Justa (FTJ) para a transição energética que irão beneficiar tanto a Endesa como a Trustenergy (como a EDP), que têm grandes investimentos em energias renováveis. De facto, a Trustenergy já tem planos para usar apoios do PRR e do FTJ para um projecto de 900 milhões de euros (!) para reconversão da central a carvão para “Um Centro Renovável de Produção de Energia Verde nas suas várias formas”. Caso o encerramento da central por não renovação da licença de atividade implicasse uma perda considerável de receitas sem contrapartidas do Estado, os investidores poderiam desencadear um processo ISDS (como o da RWE contra a Holanda) que poderia forçar o Estado a reverter a decisão e continuar a permitir a emissão de grandes quantidades de CO2. Desta forma, tem que ser o Estado a garantir, através de apoios avultados, que as empresas não sejam prejudicadas por terem investido numa indústria altamente poluidora que há muito se sabia ser necessário fechar para evitar uma catástrofe climática.

Os restantes investimentos em combustíveis fósseis identificados consistem na central termoelétrica a gás da Tapada do Outeiro e do Pego II. A central da Tapada do Outeiro é detida pela Trustenergy e tem uma capacidade de 990 MW, o que corresponde a uma capacidade de emitir cerca de 425 toneladas por hora de CO2. A central da Pego II é detida pela Elecgás, que é um consórcio da Trustenergy e da Endesa em partes iguais, e tem uma capacidade de 836 MW, o que corresponde a uma capacidade de emitir cerca de 359 toneladas por hora de CO2. No total, podem emitir cerca de 784 toneladas por hora de CO2. Este valor é semelhante ao da EDP, que detém as centrais a gás de Lares e do Ribatejo que, no total, podem produzir cerca de 858 toneladas por hora de CO2. Ou seja, após o fecho da central do Pego o TCE protege garantidamente cerca de metade das emissões de dióxido de carbono portuguesas para produzir eletricidade que correspondem a cerca de 30% do total das emissões de dióxido de carbono portuguesas.

De fora do artigo da IE ficaram a EDP e a REN, que têm cerca de mil quilómetros de gasodutos e o terminal de gás natural de Sines. Apesar de os accionistas maioritários da EDP (a China Three Gorges, com 19%) e da REN (a State Grid of China, com 25%) serem da China, um país que não está abrangido pelo TCE, não é sinal de que estamos fora de perigo em relação a essas empresas. Em primeiro lugar porque Portugal assinou com a China um tratado bilateral de investimento em 2005 que garante aos investidores chineses a mesma “imunidade” conferida pelo TCE. Isto apenas nos diz que, apesar de o TCE ser o pior dos acordos que incluem ISDSs, pois é o que envolve mais países e causou mais litígios, outros tratados de investimento que a TROCA tem denunciado também são uma grave ameaça ao poder dos Estados de regulamentar. Por outro lado, o segundo maior accionista da EDP é a Oppidum Capital, com 7,2%, e o quinto maior accionista da REN é a Red Eléctrica Nacional, com 5%. Estas duas empresas são espanholas e estão abrangidas pelo TCE e, portanto, poderão desencadear uma ação ISDS. Finalmente, também é preciso considerar que o secretariado do TCE tem promovido uma agenda de expansão que inclui a China, que está a estudar a sua adesão. Por isso é possível que a China seja abrangida pelo TCE num futuro próximo, o que reforça uma urgência por parte de Portugal na saída do TCE. 

Também a Galp e a sua importante indústria de refinação de petróleo são abrangidos pelo TCE, pois o seu principal acionista é uma empresa sediada em Amsterdão chamada Amorim Energia. A Galp tem as refinarias de Sines e Matosinhos, com uma capacidade de refinação de 330 mil barris por dia, que correspondem (na produção e consumo) à emissão de cerca de 7 mil toneladas por hora de CO2.

Dada a enorme barreira que este tratado impõe para a implementação de políticas públicas em relação à indústria de combustíveis fósseis, é urgente que Portugal abandone, com a maior brevidade e de preferência de forma coordenada, este obsoleto Tratado anti-clima. 

Dada a limitação à soberania dos países que este tratado representa, a Itália e a Rússia já o abandonaram. Por outro lado, o TCE encontra-se em processo de modernização para não bloquear a transição energética imposta pelos Acordos de Paris. Mas países como o Japão e o Azerbaijão não desejam e podem impedir alterações consequentes e mesmo as alterações consideradas pelos países europeus estão longe de ser compatíveis com o Acordo de Paris.

Por isso, a França, a Espanha e o Luxemburgo já consideram o abandono conjunto do tratado, caso a modernização não tenha os resultados desejados. Portugal não tomou posição (conhecida), o que enfraquece a posição dos países que exigem uma modernização minimamente consequente, dentro de um prazo aceitável. Na Assembleia da República foram aprovados dois projetos de resolução, da autoria da deputada Cristina Rodrigues e do PEV, que apelam à rejeição do Tratado da Carta da Energia na sua forma atual, mas não foram aprovadas ações concretas a tomar. Lamentavelmente, o projeto de resolução do PAN, recomendando ao Governo português o abandono do Tratado da Carta da Energia, foi rejeitado.

A TROCA – Plataforma por um Comércio Internacional Justo e a ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável avançaram com a petição “Travar o Tratado que bloqueia o Acordo de Paris” e, com a rede Europeia que integram, uma petição que “Apela à retirada do Tratado da Carta da Energia”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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