Jaime Lerner, o urbanista que dizia que o carro seria o cigarro do futuro

Cultor da humanização do espaço público, o arquitecto Jaime Lerner catapultou Curitiba como exemplo mundial de uma cidade voltada para as pessoas. Morreu esta quinta-feira, com 83 anos.

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O arquitecto e urbanista Jaime Lerner fotografado no Estoril em 2010 DANIEL ROCHA

Era arquitecto também, com obra reconhecida, mas o Brasil, e o mundo talvez lhe deva mais pelo que fez enquanto urbanista. Jaime Lerner, antigo prefeito de Curitiba e ex-governador do seu Estado, o Paraná, morreu esta quarta-feira, aos 83 anos. Ultrapassara a covid-19, doença que ainda o apanhou de leve após duas imunizações com uma vacina, mas foi a complicação de uma doença crónica, do foro renal, que calou a voz desafiadora do homem que há décadas vinha avisando que o automóvel se estava a tornar no cigarro das cidades. 

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Era arquitecto também, com obra reconhecida, mas o Brasil, e o mundo talvez lhe deva mais pelo que fez enquanto urbanista. Jaime Lerner, antigo prefeito de Curitiba e ex-governador do seu Estado, o Paraná, morreu esta quarta-feira, aos 83 anos. Ultrapassara a covid-19, doença que ainda o apanhou de leve após duas imunizações com uma vacina, mas foi a complicação de uma doença crónica, do foro renal, que calou a voz desafiadora do homem que há décadas vinha avisando que o automóvel se estava a tornar no cigarro das cidades. 

A morte de Lerner, no hospital onde estava há dias internado, foi divulgada esta manhã em Portugal pela prefeitura de Curitiba, município capital do Paraná, a sul de São Paulo, que este arquitecto formado na universidade estadual local governara em três mandatos distintos. Em 1971 e em 1979, por nomeação, enquanto figura do partido que dava suporte político à ditadura militar, e em 1989, já por eleição, apesar da oposição da família. Apresentou-se a votos 12 dias antes da votação, e ganhou. 

Se quisermos escolher uma marca destas passagens pela governação local, o metro sobre rodas, que hoje existe em dezenas de cidades do mundo e com vários nomes — metro-bus, BRT, ou Bus Rapid Transit — é talvez a mais evidente. Desde logo enquanto instrumento e símbolo de uma tentativa de garantir mobilidade para todos, algo que não passava, na cabeça de Lerner, pela democratização do uso do automóvel na cidade. Aliás, o autor de Acupunctura Urbana repetia, em quase todas as entrevistas que dava, um chavão, que não perdeu actualidade, e que estava na sua cabeça desde 1971: O carro, alertava, seria o tabaco do futuro. 

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“Se tivermos um olhar generoso em relação às cidades, teremos um olhar generoso em relação às pessoas”. daniel rocha

Transporte público e espaço para os peões

O problema, para Lerner, enquanto urbanista, não estava apenas no paralelo entre o fumo dos escapes e o fumo dos cigarros (mais evidente na década de 70, em que a electrificação da mobilidade era uma miragem), mas nos riscos que esta dependência trazia para o espaço urbano. Congestionamento, sobre-ocupação e degradação do espaço público, expansão urbana, como resposta, com custos para o erárioe para a qualidade de vida dos cidadãos, perdidos no meio do tráfego, durante horas. 

Era assim a cidade de Curitiba, com os seus subúrbios e 700 mil habitantes, quando ele foi nomeado para a governar em 1971. Ao El País, em 2018, explicou que tinha com ele uma equipa de jovens comunistas, e que, sabendo que poderiam ser corridos do poder a qualquer momento, rapidamente meteram mãos à obra. Não tinham dinheiro para fazer uma rede de metro, inventaram outra coisa. Com o metro-bus, transporte em canal segregado, de elevada frequência, roubaram espaço aos carros nas ruas. 

É desse mandato, também a pedonalização da Rua 15 de Novembro, transformado no primeiro grande calçadão urbano do Brasil, e que ganhou, com isso, o cognome de Rua das Flores. “A cidade é a síntese da sociedade e a síntese da cidade é a rua. Nada do que o urbanismo contemporâneo inventou é melhor do que a rua tradicional ou a rua de que cada um de nós gosta mais”, afirmava ao PÚBLICO, em 2010.

Nos seus esforços de acupunctura urbana, criou a Ópera do Arame, a Universidade Livre do Meio Ambiente e manteve, desde o primeiro momento, uma aposta nas soluções de base natural e na expansão dos espaços verdes de utilização colectiva. Nos anos 70 criou um mecanismo de “expropriação”, em que a cidade comprava boa parte do espaço detido por alguma família, dando a esta, em troca, isenção de impostos vitalícia sobre a parcela restante, e a honra de ter o seu nome inscrito nos parques e jardins que assim se foram criando. “A proporção desses espaços aumentou de meio metro quadrado por habitante para 50. Hoje estamos na marca dos 60 metros quadrados, um dos índices mais altos do mundo”, afirmava ao El País em 2018. 

A cidade enquanto refúgio da solidariedade

Lerner ainda foi governador do Paraná, entre 1995 e 2003, tendo, nesses anos, posto em prática outras medidas marcantes, na área da Educação e do Ambiente, mas foi enquanto autarca, arquitecto e, principalmente, enquanto urbanista que se tornou reconhecido mundialmente, a ponto de a ONU o nomear consultor para esta área. O próprio assumiu sempre que ter sido autarca foi uma das fases mais felizes da sua vida. 

No entanto, duas décadas depois dessa terceira passagem pelo poder local, e em jeito de balanço, insistia, nessa mesma conversa com o El País, que Curitiba não é um modelo: “É uma referência de simplicidade, de imperfeição e de trabalho com poucos recursos. Minha intenção nunca foi salvar o mundo, e sim promover o desejo de mudar as coisas. Acho que isso é possível.”. Ao PÚBLICO, anos antes, deixava clara a sua crença: “Se tivermos um olhar generoso em relação às cidades, teremos um olhar generoso em relação às pessoas”. A cidade, insistia, “é o último refúgio da solidariedade”.