Um problema de travões

O palavrão nesta polémica dos apoios sociais e do Tribunal Constitucional não é a norma-travão, é mesmo a governabilidade

1. Portugal tem cada vez mais partidos com representação na Assembleia da República, a última maioria absoluta de um só partido foi há 15 anos (Sócrates em 2005) e tudo leva a crer que, no futuro, poderemos cada vez mais assistir a coligações de governo ou acordos de incidência parlamentar (parecidos com a primeira “geringonça") com mais de dois partidos. Nessas circunstâncias, governar em maioria relativa, como fez Guterres entre 1995 e 1999, será muito mais difícil, e governar em coligação, como fizeram o PSD e o CDS de Durão Barroso e Portas, também. Disso, não haverá muitas dúvidas.

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1. Portugal tem cada vez mais partidos com representação na Assembleia da República, a última maioria absoluta de um só partido foi há 15 anos (Sócrates em 2005) e tudo leva a crer que, no futuro, poderemos cada vez mais assistir a coligações de governo ou acordos de incidência parlamentar (parecidos com a primeira “geringonça") com mais de dois partidos. Nessas circunstâncias, governar em maioria relativa, como fez Guterres entre 1995 e 1999, será muito mais difícil, e governar em coligação, como fizeram o PSD e o CDS de Durão Barroso e Portas, também. Disso, não haverá muitas dúvidas.

É, por isso, que ouvir as expressões “coligações negativas” ou “norma-travão” torna-se cada vez mais frequente e importante. A coligação negativa existe quando o Governo tem maioria relativa e os partidos da oposição conseguem fazer aprovar no Parlamento propostas contra a vontade do primeiro-ministro. A norma-travão, que faz parte da Constituição desde o dia 1, pretende proteger os Orçamentos do Estado de serem desvirtuados, ou seja, impedir que depois da sua aprovação haja medidas que possam fazer aumentar a despesa ou diminuir a receita. É isso que está em causa nesta polémica sobre o alargamento dos apoios sociais que Marcelo Rebelo de Sousa promulgou e que António Costa mandou para o Tribunal Constitucional, queixando-se de que está em causa uma violação da lei-travão. A importância desta guerra tem toda a ver com as futuras condições de governabilidade, até onde a oposição pode ir e quem tem mais força para negociar. Não interessam, neste caso, a Costa as eventuais perdas de uma fricção com o Presidente mas os ganhos de autoridade perante os partidos da oposição na altura de negociar Orçamentos do Estado (condição essencial para governar). Nesse sentido, o primeiro-ministro fez bem em pedir ao Tribunal Constitucional que se pronuncie e que clarifique todas as zonas cinzentas.

Mas por que razão António Costa não o fez em ocasiões anteriores, como, por exemplo, no ano passado, quando a oposição forçou o aumento de algumas despesas no Orçamento Suplementar? Parece-me que a resposta está novamente na questão política. Em tensão permanente com o BE, talvez o PS veja como cada vez mais difícil a tarefa de levar esta legislatura até ao fim, mas sabe que ninguém lhe perdoará se desistir ou fizer chantagem aberta. Ontem, questionado pelos jornalistas, admitiu, aliás, de forma clara que “só haverá problemas de governação no dia em que seja apresentada uma moção de censura ao Governo” no Parlamento, ou seja, empurrou para a oposição todo o ónus e responsabilidades.

2. Aguardemos, com expectativa, o que dirá o Tribunal Constitucional, pois a sua jurisprudência nesta matéria não é, infelizmente, a preto e branco. Nos anos 90, por exemplo, considerou que a abolição de portagens num troço da auto-estrada do Oeste (fazendo diminuir a receita do Estado) não violava a norma-travão. 

Por outro lado, não sei se, em 1976, quando incluíram na novíssima Constituição a lei-travão, os deputados sonhavam que Portugal voltasse a ter almofadas orçamentais. Nos últimos 50 anos, Portugal só teve excedente orçamental duas vezes: em 1973 e em 2019. Nos anos 70, isso deveu-se à conjugação do crescimento económico com o nível mais baixo de investimentos nos serviços públicos. Em 2019, Mário Centeno repetiu o feito (conseguindo guardar 403 milhões), à custa do aumento das contribuições para a Segurança Social e de algumas cativações. E isso levanta outra questão, talvez, mais do domínio da moral, que não sei se o TC quererá abordar, que é a legitimidade para se dizer que não há dinheiro quando, na verdade, existem folgas orçamentais.

Por último, uma pequena dúvida. A norma-travão diz que “os deputados não podem apresentar projectos de lei ou propostas de alteração que envolvam, no ano económico em curso, aumento das despesas ou diminuição das receitas do Estado”. Lido à letra, o presidente da Assembleia da República não devia sequer admitir a plenário para discussão essas propostas embora, pelo que se sabe, tenham sido sempre aceites.

Seja, pois, dada a palavra aos juízes do Tribunal Constitucional que é uma bela forma de celebrar os 45 anos da Constituição.