O impacto da pandemia na gestão das doenças raras: constrangimentos, desafios e oportunidades

É inquestionável o impacto da pandemia nas doenças crónicas. As doenças raras não são excepção e muitos são os constrangimentos a enfrentar em dias de confinamento geral. Mas não só. Também tem havido espaço para inovar e criar iniciativas pioneiras em Portugal. O tema esteve em debate.

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(Re)veja o vídeo o webinar no link abaixo

O webinar “Doenças raras em tempo de pandemia: impactos e desafios na sua gestão” antecipou a comemoração do Dia Mundial das Doenças Raras, comemorado a 28 de Fevereiro, e resultou da parceria entre o Público e a Takeda. Num debate muito participado, que foi transmitido em directo no site, no Youtube e na página de Facebook do Público, ficaram bem patentes os desafios que a pandemia veio colocar a estes doentes. Foi dada ainda possibilidade de os leitores colocarem questões ao painel composto por cinco oradores com trabalho desenvolvido nesta área.

Re(veja) aqui o webinar “Doenças raras em tempo de pandemia: impactos e desafios na sua gestão” 

Luís Brito Avô, coordenador do Núcleo de Estudos de Doenças Raras da Sociedade Portuguesa da Medicina Interna começou por contextualizar o tema, afirmando que “não existe ainda em Portugal um registo nacional de doenças raras” e que o conceito de doença rara é puramente estatístico. “Na Europa, considera-se uma doença rara quando ocorre um caso em cada dois mil habitantes.”

Olga Azevedo, médica cardiologista e coordenadora do Centro de Referência de Doenças Lisossomais de Sobrecarga do Hospital da Senhora da Oliveira – Guimarães começou por falar destas doenças em particular como “doenças hereditárias do metabolismo dos lisossomas, num total de cerca de 50, causadas por mutação dos genes que codificam para as enzimas lisossomais. Estas enzimas são responsáveis por degradar uma série de substâncias e estas doenças são multi-sistémicas, ou seja, afectam vários órgãos”. O facto de afectarem vários sistemas vai fazer com que estes doentes tenham uma “morbilidade significativa e mortalidade prematura”. Crónicas, progressivas e sem cura conhecida, estas doenças podem ser tratadas “através da reposição da enzima em falta ou que não está a funcionar bem ou através de medicamentos que ajudam estas enzimas a funcionar melhor”.

À luz de um estudo realizado pela Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) e a Takeda, avaliou-se o impacto da pandemia de covid-19 nas doenças lisossomais de sobrecarga. Olga Azevedo destacou dois resultados: a redução de 18% das consultas de seguimento destes doentes e de 6% do número de sessões de hospital de dia. A médica cardiologista interpretou o primeiro dado com o que se passou na primeira vaga, no período de Março a Maio de 2020. “No primeiro confinamento geral, houve um adiamento da actividade programada em geral e isso fez com que estes doentes que tinham consultas e exames marcados para este período, não as tivessem. Depois, houve um esforço adicional das equipas multidisciplinares de recuperar todos os doentes que ficaram para trás, que acabaram por ser reavaliados em Junho, em Julho e Agosto”, referiu.

Relativamente ao número de sessões em hospital de dia, Olga Azevedo considera que a redução não foi tão significativa, à excepção da doença de gaucher, com menos 17% de consultas. “É preciso reconhecer que, para esta doença [e, isto, independentemente da pandemia] existe uma alternativa de terapêutica oral e, já em 2019 e 2020, alguns doentes transitaram da terapia endovenosa em hospital de dia para terapêutica oral, o que, em parte poderá explicar os números, mas não explica tudo.”

Por outro lado, algumas pessoas com esta doença podem ter espaçado as suas sessões em hospital de dia transitando para visitas com um maior intervalo. “Um dos motivos, que, de facto, nos preocupa, é que muitos doentes tiveram receio de se deslocarem para realizar os seus tratamentos. Temos conhecimento de doentes que interromperam voluntariamente os seus tratamentos em vários centros de referência e, infelizmente, esse adiamento está associado ao agravamento clínico.” Há que pensar em alternativas a oferecer a estas pessoas para que estas situações não aconteçam, como por exemplo, o tratamento domiciliário.

Estratégia nacional para as doenças raras

A pandemia de covid-19 teve um impacto em todo o sistema de saúde e no Serviço Nacional de Saúde “e trouxe grandes desafios, mas também oportunidades de melhoria”, salientou Válter Fonseca, director do Departamento de Serviços da Qualidade na Saúde da Direcção-Geral da Saúde (DGS). “A estratégia integrada para as doenças raras estava vigente de 2015 a 2020 e, este último ano, que seria um ano de avaliação do percurso feito em Portugal nesta área, coincidiu com a pandemia, o que implicou algum adiamento de alguns pontos de actuação, mas isso não nos afastou do objectivo muito sério de mantermos uma estratégia bem definida para as doenças raras”, disse.

Apesar de alguns constrangimentos colocados por esta pandemia, Válter Fonseca destacou aspectos positivos, como são exemplo, “a deslocalização dos cuidados hospitalares para cuidados mais domiciliários foi acelerada, bem como, o recurso a novos métodos tecnológicos, como a teleconsulta e a telemonitorização”, referiu o também membro da coordenação executiva da task-force covid-19 da DGS.

Paulo Gonçalves, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Esclerose Múltipla e membro da Comissão Instaladora da RD-Portugal da União das Associações de Doenças Raras de Portugal trouxe alguns pontos de discussão para o debate. “Que prioridade na vacinação?”, começou por questionar indicando que os doentes raros ficam de fora dos critérios da DGS. “O diagnóstico de uma doença rara pode demorar anos, existem muito poucos rastreios e, quanto mais para o interior do país mais difícil é esta caracterização”, salientou. O orador referiu-se ao facto de Portugal não ter um sistema centrado no cidadão e, por último, destacou a articulação com a vida familiar e profissional. “Muitas destas famílias centram toda a atenção na pessoa cuidada e temos casos em que um dos elementos tem de abdicar da sua carreira profissional. Normalmente, os doentes de esclerose múltipla são os primeiros a ser descartados nas empresas”.

Válter Fonseca respondeu a Paulo Gonçalves indicando que “a decisão de critérios de vacinação é uma das decisões mais complexas em saúde pública, sobretudo numa situação de emergência, e sem nunca esquecer, a refracção das vacinas que chegam a Portugal e, em geral, aos países da União Europeia.” Disse ainda que “todas as pessoas serão vacinadas desde que haja vacinas. Perante poucas vacinas, há decisões difíceis que têm de ser tomadas”. O representante da DGS destacou que o planeamento de vacinação pode ser adaptado paulatinamente havendo possibilidade de serem integradas “doenças de menor prevalência a serem definidas e esse trabalho está a ser feito”.

O desafio da “odisseia diagnóstica”

Carla Benedito, directora-geral ibérica da Takeda mostrou alguma preocupação relativamente ao impacto do segundo confinamento geral na gestão e acompanhamento dos doentes raros. “Sabemos que este segundo período foi muito grave e que os hospitais estão ainda em situações muito críticas.” A responsável adiantou que existe interesse da Takeda e da APAH em desenvolver o estudo com os dados mais recentes. “Em Portugal, os doentes demoram uma média de sete anos a serem diagnosticados e a pandemia vai levar a que o diagnóstico seja ainda mais demorado. Sabemos que, nestas doenças, cada ano que se atrasa o diagnóstico, o prognóstico é menos bom.”

Olga Azevedo acrescentou que não foram só os hospitais que atrasaram as suas actividades. “Todas as estratégias que minimizem aquilo a que chamamos ‘odisseia diagnóstica’ dos doentes com doenças raras são importantes. Numa fase de pandemia, tememos todos que haja um atraso ainda maior do que aquele que é, infelizmente, habitual, no diagnóstico. Na verdade, o que verifiquei, de uma forma geral, é que há um atraso na referenciação porque o que se passou com o atraso dos hospitais também se verifica nos cuidados de saúde primários.” Em contraponto, no entanto, os hospitais foram-se adaptando a esta nova realidade e foram implementando estratégias que iam minimizando este impacto no atraso dos cuidados de saúde dos doentes, em geral, e dos doentes raros, em particular, nomeadamente a teleconsulta, que tem permitido manter o acompanhamento regular destes doentes, ainda que não seja de forma presencial”, salientou a médica cardiologista.

Administração de medicação ao domicílio

O estudo “Rare disease patients’ experience of COVID-19” promovido pela European Organisation for Rare Diseases (Eurordis), realizado em 36 países, com 7000 inquiridos, e publicado em Abril de 2020, concluiu que, “em Portugal, 70% das pessoas com doenças raras reportaram interrupção ou adiamento dos seus tratamentos e 48% dos inquiridos não foram ao hospital com receio de contrair a infecção de covid-19”. A entrega de medicação ao domicílio foi identificada neste estudo como uma iniciativa muito benéfica e relevante para os doentes. Um comunicado de imprensa da mesma organização, com a mesma data, revelava “preocupações específicas com esta população devido à sua condição clínica frágil e as dificuldades de acesso aos hospitais.” Nesse sentido, Olga Azevedo deu a conhecer a iniciativa pioneira em Portugal no Hospital da Nossa Senhora da Oliveira – Guimarães que dá a possibilidade de os doentes receberem, desde Dezembro último, o tratamento da sua doença ao domicílio. Enquanto centro de referência nacional para as doenças lisossomais de sobrecarga, e como forma de evitar deslocações desnecessárias para doentes previamente seleccionados, a administração do fármaco que era feita em hospital de dia passa a ser realizada, com toda a segurança, em suas casas, com o apoio de equipas da UMAD (Unidade Móvel de Apoio ao Domicílio).

O tratamento das doenças lisossomais de sobrecarga ao domicílio já existe há mais de uma década em vários países e com experiências muito positivas que revelam que esta administração é segura e que os doentes mostram maior satisfação, maior adesão à terapêutica e melhoria da qualidade de vida. “A vontade de implementar o tratamento domiciliário destas doenças, em Portugal, sempre existiu. No entanto, a pandemia veio acelerar muitas coisas e tornou essa necessidade ainda mais premente”, explicou a médica cardiologista. “Para que isto não acontecesse, no nosso centro de referência e para que os doentes não interrompessem os seus tratamentos devido ao receio que sentiam [na segunda e terceira vagas, onde se assistiu a um maior número de novas infecções e de óbitos], implementámos o tratamento domiciliário que consiste em administrar a medicação que os doentes recebiam no hospital de dia, no domicílio. Os doentes podem receber na mesma os medicamentos, mas no conforto dos seus lares e sentindo-se mais protegidos de uma potencial infecção por covid-19 e sem risco de agravamento clínico.”

Note-se que nem todos os doentes podem ser candidatos a esta possibilidade, o que requer uma avaliação anterior. “Têm de ser doentes acompanhados em hospital de dia há, pelo menos, seis meses e que não tenham registo de qualquer reacção adversa ao medicamento. Por outro lado, têm de ser doentes que tenham condições no domicílio para poderem fazer medicação em casa e devem demonstrar essa vontade. Se estas condições estiverem cumpridas, são potencialmente elegíveis, mas não podemos esquecer que, em alguns doentes, podem existir motivos clínicos que, por uma questão de segurança, os médicos possam considerar que é mais seguro fazer este tratamento em regime hospitalar”, adiantou Olga Azevedo.

O projecto conta com o apoio das Unidades Móveis de Apoio ao Domicílio e, na opinião de Válter Fonseca, esta é uma experiência interessante no que respeita à descentralização dos cuidados hospitalares destes doentes para o domicílio. “Há várias iniciativas já bem implementadas e consolidadas em Portugal, como por exemplo, a hospitalização domiciliária que tem vindo a descentralizar o modelo da prestação de cuidados hospitalares, com resultados demonstrados, e que tem sido uma ajuda preciosa mesmo no combate à pandemia”, referiu o representante da DGS. Válter Fonseca considera que estes e outros projectos semelhantes respondem a uma transição para um modelo mais adaptado às necessidades das pessoas. “Estou certo de que, analisado com cautela, todas as condições de qualidade e segurança, o enquadramento legislativo em Portugal e a flexibilização dos processos, podemos trabalhar em prol das pessoas, a quem tudo aquilo que fazemos se destina.”

Atenuar as desigualdades e promover a equidade

Luís Brito Avô comentou alguns aspectos referidos pelos colegas de painel. “Eu sou internista, a medicina interna, com a medicina intensiva, é a linha da frente da ‘guerra’ covid e, por exemplo, o meu hospital tem os oito sectores existentes de medicina interna e de estes, seis estiveram ocupados com doentes covid. Só sobraram dois para doentes não-covid e tivemos depois de alargar para outras áreas levando os internistas para outros sectores”, explicou, indicando que o Hospital de Santa Maria estava, à data de realização deste webinar, dedicado ao tratamento desta infecção quase na sua totalidade.

Os doentes raros, como todos os outros doentes crónicos, foram vítimas desta realidade, acrescentou o médico internista, destacando que “a resposta da farmácia comunitária foi excelente. Finalmente, uma estratégia inteligente da parte do Ministério da Saúde”. Elogiou ainda a dispensa domiciliária por considerar uma penalização para os doentes, o facto de terem de se abastecer através de farmácia hospitalar. Por outro lado, referiu o facto de as ajudas técnicas não serem pagas, na sua maioria, e de não terem subvenções. “O atraso na resposta de consultas teve um efeito de cascata, mas, apesar de tudo, o acesso à primeira consulta não foi assim tão enfraquecido”, explicou. Relativamente à teleconsulta, foi com alguma precaução que Luís Brito Avô se referiu a esta alternativa. “A telemedicina é um avanço muito significativo, mas nada substitui uma clínica médica, olho no olho, com um exame clínico de um doente. Esta é a relação médico-doente pura e que é muito importante”, sublinhou, destacando, no entanto, a sua utilidade enquanto ferramenta durante a pandemia. 

Paulo Gonçalves acrescentou que a consulta por videochamada pode evitar que um doente tenha de fazer 200 quilómetros ou mais, por exemplo, em condições muito específicas. “A covid-19 permitiu repensar o modelo de os dados estarem centralizados. Mas há que ter noção que estas pessoas têm de ser conhecidas pelo sistema e este tem de reconhecer quem é o profissional que as trata”, defendeu. “Se tivermos transparência na informação, conseguimos demonstrar que o Estado vai poupar no orçamento, se mudarmos o modelo.” Luís Brito Avô referiu que “os centros afiliados de mais proximidade, a nível distrital, do centro de referência, já estão previstos”.

As experiências relacionadas com as videoconsultas também foram estudadas a nível internacional com bons resultados, devidamente publicados na literatura científica. “Por isso, esta estratégia que está a ser desenvolvida pela Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) ganhou um impacto ainda mais relevante nesta altura da pandemia e que se espera que se mantenha depois, ou seja, a possibilidade de os doentes estarem em suas casas. Esta ferramenta vai ser muito útil para trazer os cuidados mais perto do doente e para responder às melhores necessidades dos doentes”, defendeu Olga Azevedo. E, reforçou, “a importância de se lutar pela equidade de acesso às melhores modalidades de tratamento e, quanto mais em proximidade, melhor”. A médica cardiologista sublinhou a relevância da equidade de acesso e que “todos os doentes devem ter as melhores modalidades de tratamento”.

Um esforço conjunto

No que respeita ao apoio à investigação científica, mas também à promoção da literacia para a saúde, Carla Benedito que referiu algum do trabalho desenvolvido pela empresa que dirige. “Trabalhamos muito próximos com as associações de doentes, as sociedades médicas, gerando conteúdos, oferecendo plataformas de interacção e melhor informação dos doentes. Como as doenças raras são tão infrequentes – e há tantas doenças raras – a Takeda tenta ser um ponto de passagem de informação”, disse a directora-geral da Takeda. “Temos treze produtos que vamos lançar nos próximos anos e, desses, dez são específicos para as doenças raras”, sublinhou.

Luís Brito Avô destacou o Consórcio Internacional para a Investigação sobre Doenças Raras (tradução de International Rare Diseases Research Consortium - IRDiRC) que traçou objectivos para 2020 para que seja possível haver tratamento para medicamentos órfãos e para que houvesse tratamentos para, pelo menos, metade das doenças raras. Essas metas foram plenamente atingidas. Neste momento, há 3600 testes contributivos para diagnóstico das doenças raras e 200 medicamentos órfãos no activo. É objectivo do IRDiRC, para 2027, que seja possível o diagnóstico de todas as doenças crónicas que estiveram descritas nessa altura e que haja 1000 tratamentos disponíveis para as doenças órfãs.”

Carla Benedito acrescentou que alguns dos desafios em Portugal relacionados com os ensaios clínicos se prendem com o facto de não existir um registo global das doenças raras. “Se houver o registo destes doentes e que permita o seu seguimento, de forma fácil e directa, haverá ainda mais ensaios clínicos”, disse. Luís Brito Avô salientou, a este propósito, que “só com o registo e os rastreios é que é possível conhecer a epidemiologia do país, montar as estratégias de saúde adequadas e os níveis investigacionais”.

Foi com uma mensagem de esperança que este debate terminou. “Este sub-grupo de doentes representa 10% da população e o meu desejo é que não sejam esquecidos, mas sim, estimados”, disse Carla Benedito. “Estes doentes não estão sozinhos. Somos muitos a trabalhar para ajudar estas pessoas que vivem com doenças raras”, sublinhou. Olga Azevedo terminou com o slogan do Dia Mundial das Doenças Raras deste ano: “Somos raros, Somos muitos, Somos fortes”. “Para que estes muitos ‘raros’ sejam efectivamente fortes, precisam do trabalho de todos nós”, concluiu.