Miguel Prudêncio: vacinas da Rússia e da China devem “ser analisadas da mesma forma que as outras”

Investigador do Instituto de Medicina Molecular elogia compra de vacinas em bloco, mas mostra preocupação com a disparidade no acesso entre países ricos e pobres.

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Miguel Prudêncio diz-se preocupado com disparidade de acesso entre países ricos e pobres Gonçalo Ribeiro, iMM

Miguel Prudêncio é investigador principal do Instituto de Medicina Molecular (iMM), da Faculdade de Medicina na Universidade de Lisboa. Em entrevista ao PÚBLICO, o especialista falou sobre o processo de vacinação europeu, analisando ainda as razões para a quebra de produção de doses que coloca um travão na vacinação europeia. 

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Miguel Prudêncio é investigador principal do Instituto de Medicina Molecular (iMM), da Faculdade de Medicina na Universidade de Lisboa. Em entrevista ao PÚBLICO, o especialista falou sobre o processo de vacinação europeu, analisando ainda as razões para a quebra de produção de doses que coloca um travão na vacinação europeia. 

A taxa de letalidade na população mais idosa sofreu uma quebra nas últimas semanas. Sente que já estamos a registar o efeito da vacinação?
Talvez possa haver algum efeito, mas a percentagem de pessoas vacinadas ainda é muito reduzida para que esta diminuição do número de internamentos e mortos seja amplamente justificada pela vacinação. A redução que estamos a assistir é uma consequência sobretudo das medidas de confinamento mais apertadas. É natural que essas pessoas estando protegidas contribuam para esta melhoria nos números. A mensagem que eu gostava de deixar é: sem dúvida que as vacinas já estão a contribuir. Em que medida e percentagem absoluta não consigo dizer, é difícil [fazer essa contabilização].

Em Novembro, disse ser “altamente improvável” que a vacina chegasse antes de 2021, algo que viria a acontecer. Surpreendeu-o a velocidade na produção e autorização?
Eu e muitos cientistas dissemos várias vezes que a probabilidade de termos uma vacina ainda em 2020 era baixa. Foi surpreendente na medida em que aquilo que se conseguiu fazer do ponto de vista do desenvolvimento de uma vacina com esta eficácia e segurança num espaço de tempo tão curto não tem precedente. Eu e outros colegas estávamos a ser cautelosos – e com algum receio de defraudar as expectativas das pessoas – quando dissemos que porventura não haveria vacina antes do final de 2020. O que aconteceu foi a concretização de um conjunto de circunstância para termos vacinas em tempo recorde sem colocar em causa a segurança das mesmas.

Quais foram esses factores?
Desde logo, o facto de termos uma tecnologia – a do RNA mensageiro – que já estava a ser desenvolvida para outros fins, mas que encontrou aqui uma aplicação em que funcionou de forma extraordinariamente decisiva. Depois, temos o empenho da comunidade científica e farmacêuticas, aliado a um financiamento praticamente ilimitado. Por último, um processo de análise e avaliação dos resultados por parte das agências reguladoras em tempo real, um acompanhamento muito em cima do acontecimento. Isto em vez dos processos mais burocráticos a que o desenvolvimento de vacinas e fármacos estão sujeitos. O que é muito importante ficar claro é que isto foi conseguido sem pôr em causa a eficácia da vacina e sem queimar etapas. Os passos até à autorização foram seguindo, ocorrendo todos estes factores para chegarmos a um tempo recorde.

Se fosse o responsável pelo plano de vacinação, o que alteraria?
(Risos) Felizmente não sou. Enquanto cientista, o que tento fazer é transmitir opiniões científicas e dados. Não me compete a mim desenhar nem criticar sequer o plano. Uma decisão como implementar um plano deste tipo tem de ter em linha de conta inúmeros factores, que vão desde as considerações científicas, mas também logísticas, de ordem social, clínica, que eu não disponho. Estou sinceramente convencido que as coisas têm sido feitas da forma mais adequada e responsável possível, face ao conhecimento que se tem em cada momento. É sempre muito fácil olhar para trás e dizer: ‘Ah, se soubesse o que sei hoje podia ter feito isto ou aquilo de forma diferente’. Isto é o que os treinadores de bancada fazem. Mas quem tem de tomar as decisões tem uma tarefa muito difícil em mãos, equacionar muitas vertentes.

Na próxima semana, a Agência Europeia de Medicamentos vai decidir sobre a vacina da Johnson&Johnson, a primeira de dose única. Este regime é uma vantagem?
Sim, a vários níveis. Desde logo em termos logísticos: para as entidades que têm de gerir os stocks e planear a administração da vacina, é evidente que não ter de estar a fazer contas e a guardar a segunda dose – eventualmente existindo um atraso na entrega – é uma vantagem. Depois, no número de doses que é necessário ter para vacinar um determinado conjunto de pessoas: se termos 100 doses de uma vacina dada a duas doses, vacinamos 50 pessoas. Vai-nos permitir vacinar mais pessoas com o mesmo número de doses disponíveis. Em termos de armazenamento, é uma vacina que pode estar no congelador a -20ºC até dois anos e pode estar três meses num frigorífico. Quanto aos dados: ainda não está publicado no artigo científico, mas o que já temos mostram uma eficácia elevada, cerca de 85% na prevenção de doença severa e morte.

Nos Estados Unidos, a Johnson&Johnson vai juntar-se à Merck & Co. para acelerar a produção de vacinas. Depois do anúncio da parceria, Joe Biden disse que os adultos norte-americanos serão totalmente vacinados até ao final de Maio. Isto pode ser replicado na Europa?
É óbvio que tudo o que sejam parcerias que permitam aumentar a capacidade de produção e doses disponíveis serão sempre vantajosas para as populações. Neste momento, o problema principal com as vacinas é existir um número de doses limitada. Discute-se muito o levantamento das patentes para produzir as vacinas sem restrições, penso que é algo que merece ser discutido. Tudo o que contribua para o aumento da capacidade de produção deve ser explorado, sem dúvida.

Falando da falta de doses: acha que as farmacêuticas foram demasiado optimistas e prometeram o que não podiam cumprir?
É muito difícil compreender exactamente o que se passou. Penso que podem existir vários factores [que contribuíram para isso]. Uma procura muito elevada de vários países, uma sobrestimação da capacidade de produção e, porventura, questões do foro político no cumprimento de contratos firmados. Aquilo que posso dizer é que espero sinceramente que os contratos sejam cumpridos e que se retome o calendário, porque é muito importante para quem está a gerir o plano de vacinação saber com o que contar.

Falou de política na questão das vacinas. Acha que a União Europeia deveria olhar para as vacinas russas e chinesas como possibilidade?
Sobre a União Europeia, gostaria de dizer que sou radicalmente contra a ideia de que teria sido melhor não agir em bloco. Para nós, Portugal, se as negociações tivessem sido feitas país a país com as diferentes farmacêuticas, teríamos mais a perder do que a ganhar. Agora sobre as vacinas: acho que devem ser analisadas da mesma forma que as outras são, de um ponto de vista estritamente científico pelas agências reguladoras. Este é um processo que não depende só da União Europeia, mas também do facto de as próprias farmacêuticas submeterem o pedido de revisão e entregarem os dados. Sem querer entrar na questão política, do ponto de vista científico – aquele em que me sinto mais abalizado para falar –, acho que havendo uma submissão desse pedido seja de que farmacêutica ou país for ele deve ser analisado. O que é preciso não é questionar de onde a vacina vem, mas os dados que estão disponíveis, a sua segurança. Não há, à partida, razões para excluir vacinas.

A Comissão Europeia está a estudar a aprovação de emergência de vacinas, para acelerar a chegada do medicamento aos países. Vê algum risco nesta medida?
Temos um processo de autorização de emergência em que essa autorização é dada ou não em função dos dados disponíveis. Penso que não há qualquer risco, desde que as diferentes etapas do processo de revisão e análise sejam cumpridos. O facto de se tentar agilizar essas etapas não deve ser razão de preocupação, na minha opinião.

Com uma pandemia que paralisou tanto a sociedade, compreende que ainda exista em alguns países tanta resistência às vacinas?
Esse é um tema delicado para mim. Fascina-me a questão da desinformação e por que razão as pessoas optam por não estarem protegidas contra algo que as pode matar – ou aos filhos. Felizmente, em Portugal não me parece que esses números sejam significativos, mas noutros países são. Há acções concertadas de desinformação, grupos ligados a movimentos políticos que fomentam teorias da conspiração e desinformação. O resultado disso é que as pessoas, algumas com intenções que não compreendo quais são, o fazem deliberadamente. Outras, por receios infundados, mas que lhes são incutidos, têm essa hesitação. O impacto que as vacinas têm nas vidas que são salvas tem de ser visto pelas pessoas como uma prova inequívoca dos benefícios de ser vacinado. A desinformação combate-se com informação e apresentação de dados concretos.

Preocupa-o a disparidade no acesso a vacinas entre países ricos e pobres?
Evidentemente que sim, penso que é algo que se está a tentar colmatar através da COVAX. Quando olhamos para os números, a disparidade está lá. É altamente patente e preocupante. Sabemos que hoje em dia vivemos num mundo global e há duas vertentes a mencionar: a primeira é humanitária e a segunda até um pouco egoísta. Por um lado, há um imperativo ético de proteger toda a gente. Ao mesmo tempo – para algumas pessoas isso não é razão –, como dizia António Guterres há pouco tempo, só estaremos protegidos quando todos estivermos protegidos. A interligação entre as diferentes regiões do globo é tão grande que o facto de estarmos protegidos não nos protege por completo se houver outras zonas em que não há essa protecção.

Elogiou a compra em bloco das vacinas. Acha que a União Europeia foi egoísta ao garantir mais doses do que as necessárias?
Elogiei o bloco europeu no sentido de que para nós, Portugal, e para cada país, seria menos vantajoso actuar individualmente. Para um país pequeno como Portugal seria desastroso. Essa é outra dimensão do problema: a Europa, tal como outros países – o Canadá e outros com maior capacidade económica – contratualizaram mais vacinas do que as que vão necessitar. Isso não pode deixar de ser uma fonte de preocupação, espero que haja capacidade de ser estabilizada a produção para se poder gerir esta disponibilidade de forma diferente. Houve estas contratualizações de números acima do necessário um bocadinho por precaução, não sabíamos que vacinas iam ser aprovadas e era preciso garantir um número suficiente de várias. Agora que está estabilizado, haveria todo o interesse de reanalisar a distribuição do que está contratualizado tendo em conta as necessidades dos países que não fazem parte do bloco europeu.

Há países que vão administrar a vacina da AstraZeneca a pessoas com mais de 65 anos. O que pensa sobre essa decisão?
A recomendação de não dar essa vacina a pessoas com mais de 65 anos nunca resultou de quaisquer indicações de que a vacina não fosse segura ou eficaz nessa faixa etária. O que aconteceu foi que dentro dos milhares de pessoas que participaram nos ensaios cínicos, a percentagem de pessoas acima dessa idade era relativamente reduzida. O que os países disseram, entre os quais Portugal, foi que não existiam números suficientes para ter a certeza sobre a eficácia e preferiu-se não dar a essas pessoas. Entretanto, esses números são gigantescos porque temos milhões de pessoas vacinadas, nomeadamente no Reino Unido, e já começaram a sair análises do impacto dessa vacinação incluindo em pessoas acima dos 65 anos.

O surgimento de novas variantes será o principal desafio à imunização global?
O surgimento de novas variantes não vai pôr em causa o esforço de atingirmos uma imunidade de grupo a nível global porque as vacinas que nós temos não são ineficazes contra essas variantes ou pelo menos contra as que até agora foram identificadas. Podem aparecer algumas mais complexas onde isso possa ser posto em causa. A imunidade gerada pelas vacinas de que dispomos não é ineficaz contra as novas variantes, mas é evidente que variantes com alguma capacidade de escapar à imunidade nos podem preocupar. Neste momento, já há empresas farmacêuticas — ​a Moderna, por exemplo —  a fazer ensaios para avaliar a hipótese de incluir no seu esquema vacinal uma vacina que seja especificamente contra a variante da África do Sul. Temos forma, do ponto de vista técnico, de adaptar a vacina a outras variantes que possam surgir e constituir razão de maior preocupação.