“Muitas vezes, a voz do locutor é a única que estas pessoas ouvem no dia”

Num período em que o confinamento não permite a socialização, as rádios locais são uma via de informação para a população mas, acima de tudo, um meio de combate à solidão. A propósito do Dia Mundial da Rádio, o PÚBLICO foi conhecer a Rádio Voz do Sorraia, em Coruche, e os seus esforços para se aproximar da comunidade.

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Adelino Castanhas recorda-se do dia em que ouviu pela primeira vez a sua rádio local. “Oiço desde o dia 6 de Agosto, já há mais de 30 anos”. Foi em 1986. Naquele Verão, “foi fundada na Travessa do Forno, nas escadinhas que ligam ao Castelo de Coruche”, a Radio Voz do Sorraia (RVS). Hoje avisa sobre a subida das águas, divulga sinais do mundo ou, simplesmente, é a voz que enche o vazio criado pela solidão ou a quem se liga para desejar tão-só um bom dia.

Conhecido na comunidade por “AC”, Adelino Castanhas tem 58 anos e trabalha há quase 40 como funcionário público na Câmara Municipal de Coruche. AC admite fazer do rádio a sua companhia diária. “Oiço a rádio todos os dias. Não tenho horas certas para começar, é quando calha. Mas ligo-o sempre de manhã”, ri-se.

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Daniel Rocha

Através do seu aparelho portátil, AC ouve durante o seu trabalho a Rádio Voz do Sorraia. Com quase 35 anos, tem agora uma equipa de sete locutores, em que cinco são colaboradores não pagos e dois trabalham em full-time com remuneração. Numa equipa que mistura a juventude de Miguel Vieira de Carvalho (22 anos) e Mónica Coelho (29 anos), com a experiência de Patrícia Sofia (41 anos) ou Carlos Manuel Anacleto (69 anos), a rádio do concelho de Coruche emite todos os dias com o objectivo de agradar a “todos os gostos e idades”.

Habitante na freguesia de Santa Justa, no concelho de Coruche, Adelino afirma estar sempre atento à informação emitida. “Eu que sou de Santa Justa tenho de passar a ponte, e quando as barragens descarregam por causa das cheias, estou sujeito a ficar isolado porque a ponte fica submersa. Então, para estar alerta, vou ouvindo a rádio”, explica.

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A informação emitida pela RVS permite à população estar atenta às novidades locais e nacionais. Porém, a grelha de programas não oferece apenas informação. Adelino, que se considera o “fã número 1 da princesa de Santo Isidro de Pegões”, mais conhecida por Rosinha, liga todos os dias para a rádio para pedir uma nova música da cantora. “Em dias de jogo do Sporting, ligo para pedir a marcha da Maria José Valério ou músicas da Juve Leo”, conta AC.

Todavia, Adelino não liga diariamente para a rádio apenas para pedir música. “Conheço a malta toda que trabalha na rádio, desde os mais novos até aos mais velhos, e muitas vezes ligo apenas para saudá-los”, relembra.

De acordo com a equipa da RVS, AC não é caso único. Desde emigrantes que ouvem a emissão online, ou população que liga todos os dias à mesma hora apenas para dizer “Bom dia”, são várias as chamadas que chegam ao telefone da rádio local. A ligação entre a rádio e a população é constante, seja a pedir informação aos locutores, a informá-los sobre novidades, a saudá-los, ou simplesmente para conversar. “Muitas vezes a voz do locutor é a única que estas pessoas ouvem durante todo o dia”, sublinha Patrícia, uma das locutoras da RVS.

Os membros da rádio confessam que a tarefa de estar em constante contacto com a população, e em emissão 24 horas, nem sempre é fácil. Apesar do apoio da autarquia, a RVS, como muitas outras rádios locais, tem dificuldades financeiras. A escassez de publicidade torna difícil realizar o processo desejado de investir na rádio online e cativar os jovens para que o futuro da rádio seja assegurado. Além disso, as instalações precárias e a renda elevada obrigaram a rádio a mudar de instalações. Contudo, com uma nova fase a surgir, os projectos para o futuro são muitos e toda a equipa está esperançosa. “A situação não é fácil, mas a gente quer e espera o melhor”, reforçou o director de programas da RVS.

Independentemente das dificuldades, a RVS continua a ser um elo de ligação entre a população, informando-a e entretendo-a. Adelino Castanhas, quando questionado sobre o que a rádio significa para a comunidade, responde: “Não sou o único que ouço, somos muitos a ouvir e falamos sobre o que ouvimos. A rádio é uma família”.

Miguel Vieira de Carvalho, um dos mais jovens locutores da RVS, remata: “É importante continuar com o nosso papel e missão social, principalmente agora que a comunidade precisa de boa informação e de boa companhia”.

Rádios locais já estão “vacinadas” contra as dificuldades

José Faustino, Presidente da Associação Portuguesa de Radiodifusão (APR), sublinha que o cenário actual das rádios locais não é fácil e prevê um futuro com muitos obstáculos. Porém, acredita na resiliência destes órgãos de comunicação e encontra-se optimista quanto ao futuro.

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De acordo com dados da APR, existem 318 rádios locais a nível nacional. Sendo que, em média, uma rádio local em Portugal, emprega 4 a 6 pessoas. José Faustino afirma que este valor já foi mais elevado, porém, actualmente as rádios estão “reduzidas a uma dimensão mínima para funcionarem e darem resposta às suas necessidades”.

Desde a legalização das rádios locais, no final da década de 80, que “o Estado português, a partir dos vários Governos, tem criado uma série de constrangimentos que aumentaram em muito as despesas das rádios e diminuíram as receitas”, explicou José Faustino. O presidente da associação destaca as complicações que o actual Governo tem colocado a este sector: “aumentou as quotas de música portuguesa obrigatória, não faz alterações na legislação de maneira nenhuma e proibiu a publicidade promocional, o que não faz sentido nenhum”. Além disto, “toda a crise económica e toda a gestão e governação do país, que culminou com a crise de 2008 a 2012, não veio ajudar”.

Porém, o presidente da APR acredita que essa crise permitiu que as rádios se adaptassem. Numa comparação com o contexto pandémico, José Faustino menciona que a crise de 2008 serviu como “vacina contra qualquer tipo de crise, inclusivamente a actual”.

A covid-19 trouxe adversidades a um sector que subsiste com base na publicidade de negócios locais. Com o encerramento de estabelecimentos como restaurantes e pequeno comércio, há neste momento pouco investimento em publicidade por parte desses negócios, reflectindo-se assim nas receitas das rádios locais. Todavia, José Faustino afirma que durante um ano de pandemia viu nas rádios locais “capacidade de se reinventarem junto dos agentes locais e criar alguma dinâmica que os possibilitou continuar”. A APR prevê que os próximos anos sejam bastante duros, porém existe confiança na capacidade de resistência das rádios locais.

De acordo com José Faustino, o segredo para que este sector continue a subsistir baseia-se na proximidade e credibilidade perante as comunidades locais. “As rádios falam uma linguagem acessível às pessoas e que sobretudo lhes diz coisas. Fala-lhes de pessoas que elas conhecem, de regiões que elas conhecem, e de coisas concretas às quais sentem uma ligação mais próxima”, explicou.

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A APR acredita que o futuro passa pela adaptação dos conteúdos radiofónicos ao digital, de modo a oferecer programação não linear e acessível a outros públicos. A aposta no digital está porém, inerente a um forte investimento, que requer apoio do Governo, algo que o presidente da associação não crê que venha a acontecer.

Na visão do presidente da APR a solução prende-se com a resiliência e a capacidade das rádios se adaptarem mesmo com falta de apoios. José Faustino mostra-se confiante no futuro, e remata dizendo que “enquanto houver pessoas, haverá radio”.

Texto editado por Ana Fernandes

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