Numa noite de copos, José de Sousa pegou num dardo e atingiu talento puro

Em apenas dois anos como profissional, português já venceu uma das principais competições da modalidade.

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José de Sousa é um dos melhores jogadores do mundo PDC

É praticamente uma condição inexorável que para se ser um dos melhores em qualquer modalidade é preciso começar cedo: Lewis Hamilton, o melhor da Fórmula 1, começou nos karts aos oito anos de idade; Cristiano Ronaldo, rei e senhor dos relvados, aprendeu a chutar a bola mal deu os primeiros passos. José de Sousa é a excepção à regra, dando-se ao luxo de entrar no universo dos dardos já em idade adulta, numa trajectória meteórica que já o levou à vitória numa das principais competições deste desporto.

Se associa imediatamente jogos de setas a bares e cerveja, acertou em cheio no alvo: o percurso de José começa justamente numa noite de copos com amigos.

“Eles pediram-me para ir com eles à sexta-feira, havia uma sala muito grande com uma máquina de setas. Não tinha ideia do que era e ganhei o gosto desde o primeiro dia. Depois montaram uma máquina na aldeia onde vivia e a partir daí ia todas as tardes depois do trabalho. Claro que [a nível profissional] é melhor começar mais cedo e encontrar logo a tua ‘vocação' para as setas”, considera José de Sousa, que actualmente reside na cidade espanhola de Tarragona, em conversa com o PÚBLICO.

Mas desengane-se: apesar do talento puro que José de Sousa descobriu na primeira saída com os amigos, o caminho até ao topo obrigou a muito esforço, dedicação e sacrifício. O Special One – alcunha atribuída pelos fãs no Reino Unido pelo nome próprio e nacionalidade que partilha com Mourinho – nasceu na Azambuja em 1974, movendo-se para Vale de Cavalos, no concelho da Chamusca, aos nove anos de idade.

No mesmo ano perdeu o pai e a mãe do jogador, que passou a vida ligada às actividades rurais, assegurou o sustento de José e mais três filhos. “Fomos sempre uma família humilde, mas nunca passámos dificuldade. A minha mãe teve de cuidar de todos e actualmente é uma alegria vê-la bem, com a sua casita, e com os filhos bem na vida”, afirma de sorriso nos lábios.

José aprendeu a arte da carpintaria e emigrou para a Alemanha, em busca de uma vida melhor. A semente dos dardos continuou plantada, ocupando os períodos livres em que não estava a desenhar cozinhas ou na construção civil. Foi numa convenção de jogos de saloon que, ao lançar um par de setas certeiras, chamou a atenção de um dos envolvidos no certame: “O representante das máquinas de setas viu-me a jogar na tenda e perguntou-me se eu jogava em alguma liga. Disse-lhe que não e ele convidou-me a participar no campeonato nacional com tudo pago. Na brincadeira disse logo que ia ganhar tudo e foi aí que tudo começou.”

Barão de droga foi o primeiro patrocinador

Para se ser profissional no mundo dos dardos, talento e competência não são suficientes: é especialmente necessário dinheiro, muito dinheiro. As inscrições nos melhores torneios custam milhares de euros, não contando com as restantes despesas em viagens, hotéis e alimentação nos fins-de-semana do torneio. Tudo somado, a possibilidade de um particular – sem posses avultadas – conseguir ser um dos melhores do mundo simplesmente não é viável, com os jogadores a precisarem de patrocinadores que lhes garantam capital para competir. Aí entra Francisco Hernandez, também conhecido por “Kiko”.

No papel, “Kiko” era um mero responsável por um bar temático e negociante de carros de luxo. A troco de publicidade para o Triple 20, bar dedicado a dardos que o espanhol geria, ofereceu-se para patrocinar José de Sousa, pagando-lhe as entradas nos maiores torneios. “Quanto é o salário em Portugal? 700, 800 euros? A entrada num torneio custa cerca de mil euros e fazemos quatro por mês. Agora imagina-te a pagar quatro mil euros por mês [só para ter acesso à competição]. Não dá, sem ajudas não consegues”, lamenta. 

No dia 5 de Outubro do ano passado, a polícia espanhola bateu à porta de “Kiko”: uma investigação descobriu que o espanhol liderava uma rede de tráfico de droga, um lado obscuro do patrocinador que José de Sousa desconhecia.

“Foi uma surpresa, o senhor Kiko Hernandez tinha um bar e geria 16 equipas. Também sabia que se dedicava à compra e venda de carros de luxo, era o que eu conhecia dele. Esse lado surpreendeu-nos a todos. Contudo, estou-lhe muito agradecido, porque foi ele que me ajudou, sempre tratou bem quem estava ao lado dele. Ia beber uns copos com ele ou jantar, era essa a minha relação com ele”, garante.

No momento em que o barão de droga foi detido, José de Sousa já tinha começado a ganhar nome neste desporto. Foi conquistando competições e troféus até chegar à “Liga dos Campeões” dos dardos: a Professional Dart Corporation (PDC). Esta organização reúne os melhores jogadores do mundo, gerindo os torneios com maior interesse e atribuindo também os maiores prémios monetários aos vencedores. Foi precisamente numa competição da PDC que o português saltou para os holofotes internacionais, ao vencer o Grand Slam, em Coventry, numa final disputada contra o britânico James Wade.

Covid-19 não travou competição

Entre gargalhadas, o Special One admite que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, não o chegou a felicitar pela vitória no Grand Slam, considerando que os jogos de setas deveriam beneficiar de mais apoio das entidades desportivas e governativas. Isto porque, garante, o país tem vários jogadores que podem chegar ao patamar que José de Sousa atingiu.

“Considero que tive um grande seguimento em Portugal, tendo recebido várias mensagens de felicitações pela vitória. Espero que estes triunfos levem o poder político a prestar mais ajudas e a melhores condições a associações e municípios para os jogadores e que motivem os jovens a praticar. Há bastante gente a começar a jogar dardos. Espero que tenham paciência e percebam que não é algo de um dia para o outro, apesar de o meu caso ter sido rápido [risos].”

José de Sousa conseguiu ser convidado pela PDC para a Premier League de dardos, uma competição que reúne os melhores dez jogadores do mundo. O anúncio serviu para aliviar o desgosto da eliminação do Campeonato do Mundo do português às mãos do inglês Mervyn King, na terceira ronda da prova. Apesar da pandemia, o jogador está confiante com a realização do evento, explicando a estratégia usada pela PDC.

“Eles tiveram a ideia de alugar salas com hotéis acoplados. Vamos directos do aeroporto para o hotel, quando chegamos fazemos o teste PCR. Depois vamos para o quarto e ficamos em quarentena até chegarem os resultados. Se o resultado for negativo, podes sair do quarto e andar dentro do hotel, mas não saímos à rua [enquanto durar a competição]”, finaliza.

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