Estudos confirmam marcas “crónicas” da covid-19 nos doentes

Ainda não existe uma explicação clara para as sequelas identificadas nas pessoas que recuperam da infecção. No entanto, é cada vez mais evidente que o imenso grupo de doentes pós-covid vai ter de continuar a ser acompanhado pelos serviços de saúde.

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Adriano Miranda

Um inquérito realizado em Portugal concluiu que cerca de 30% das pessoas que tiveram covid-19 continuam a queixar-se de sintomas da doença passado oito meses do diagnóstico da infecção. No Reino Unido, um estudo da Universidade de Leicester revelou que quase um terço dos doentes que recuperam da infecção regressam ao hospital com mais sintomas na sequência da doença no prazo de cinco meses, e um em cada oito morre. Com o persistir dos sintomas no tempo, a doença ameaça tornar-se crónica.

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Um inquérito realizado em Portugal concluiu que cerca de 30% das pessoas que tiveram covid-19 continuam a queixar-se de sintomas da doença passado oito meses do diagnóstico da infecção. No Reino Unido, um estudo da Universidade de Leicester revelou que quase um terço dos doentes que recuperam da infecção regressam ao hospital com mais sintomas na sequência da doença no prazo de cinco meses, e um em cada oito morre. Com o persistir dos sintomas no tempo, a doença ameaça tornar-se crónica.

A incrível pressão hospitalar que Portugal atravessa actualmente é um reflexo da fase aguda de mais um embate da pandemia. No entanto, é cada vez mais evidente que os doentes que recuperam da covid-19 podem ainda precisar de cuidados de saúde durante muito tempo, vários meses depois da “alta hospitalar”. Na mais recente sessão no Infarmed sobre a “situação epidemiológica da covid-19 em Portugal”, o epidemiologista Henrique Barros, do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP), apresentou os resultados de um inquérito a 1200 doentes que foram assistidos no Hospital de S. João, no Porto.

“Queixas de depressão, cefaleias, tonturas, palpitações e as conhecidas alterações do olfacto e do paladar mantêm-se durante muito tempo e afectavam praticamente 18% dos inquiridos”, disse o especialista, acrescentando ainda que “25% a 30% das pessoas mantêm sintomas para lá dos oito, nove meses”. Esses dados levaram Henrique Barros a concluir que a “covid-19 transforma-se numa doença crónica”.

O estudo português envolveu apenas doentes que foram acompanhados no hospital, deixando de fora um grande número de pessoas que estiveram infectadas e assintomáticas e também as que nem sequer souberam que estiveram infectadas e que, segundo o epidemiologista, podem vir a aparecer nos hospitais com queixas. “Se não lhes fizermos, por exemplo, o teste de anticorpos, não vamos saber que elas têm essa história no seu passado. Por isso, atrevo-me a dizer que é preciso manter estes milhares e milhares de pessoas sob observação”, alertou o investigador, citado pela agência Lusa. O relatório divulgado esta quarta-feira pela Direcção-Geral de Saúde contava mais de 428 mil pessoas que recuperaram da covid-19 em Portugal

Henrique Barros não está sozinho neste alerta. Muitos investigadores em Portugal e noutros países têm estudado os efeitos a longo prazo (possivelmente, sequelas) desta doença. À medida que a pandemia alastra pelo mundo, surgem cada vez mais provas de que alguns doentes sofrem sintomas e complicações prolongadas para além do período inicial de infecção e doença aguda.

A lista de sintomas persistentes inclui, entre outros, tosse crónica, falta de ar, aperto no peito, disfunção cognitiva e fadiga extrema. Isto, além das marcas que a doença pode deixar em vários órgãos, como os pulmões, o coração, os rins e o fígado. São tantas as queixas de pessoas que antes de estarem infectadas não tinham problemas de saúde deste tipo que há já vários trabalhos que falam na síndrome pós-covid como uma preocupação crescente em termos de saúde. Entre os diversos cuidados de que estas pessoas podem continuar a precisar depois da infecção está, por exemplo, a área da reabilitação (fisiatria) que deverá começar a receber cada vez mais estes doentes “crónicos”. “Os serviços de saúde têm de as considerar como consideram os doentes não-covid, porque já não têm essa infecção, mas a infecção foi um gatilho de um problema que vai afectar muita gente no futuro”, afirmou Henrique Barros na reunião de peritos no Infarmed.

Um outro estudo divulgado esta semana apresenta também dados preocupantes sobre uma lenta e dolorosa recuperação desta doença. O trabalho foi realizado por investigadores da Universidade de Leicester e do Gabinete de Estatística Nacional do Reino Unido e os seus autores referem que este será o maior estudo de pessoas que tiveram alta hospitalar depois de terem tido covid-19. Dos 47.780 doentes estudados, 29,4% foram readmitidos no prazo de 140 dias após a alta e 12,3% morreram. A taxa de readmissão foi 3,5 vezes superior, e a taxa de mortalidade sete vezes superior à que foi registada no grupo de controlo.

“Os indivíduos com alta hospitalar na sequência da covid-19 enfrentam elevadas taxas de disfunção multiorgânica em comparação com os níveis de base, e o aumento do risco não se limita aos idosos, nem é uniforme em todas as etnias”, lê-se nas conclusões do estudo que foi pré-publicado na plataforma MedrXiv e não foi ainda revisto pelos pares. Os autores acrescentam ainda que o diagnóstico, tratamento e prevenção da chamada “síndrome pós-covid“ (“PCS”, na sigla em inglês) “requerem abordagens integradas em vez de abordagens específicas de órgãos ou doenças”. E rematam: “É necessária uma investigação urgente para estabelecer factores de risco para a PCS.”

Em várias notícias publicadas sobre este trabalho de investigação surgem as declarações de Kamlesh Khunti, ao jornal The Telegraph: “As pessoas parecem estar a regressar a casa, a ter efeitos a longo prazo, a regressar e a morrer. Vemos que quase 30% foram readmitidas, e isso é muita gente. Os números são muito elevados. A mensagem é que precisamos realmente de nos preparar para uma longa covid.” O investigador sublinhou ainda que há um grande número de pessoas que estará a voltar ao hospital com diabetes sem que esse problema alguma vez se tenha manifestado antes da infecção.

Apesar do interesse de tantos cientistas e já há tanto tempo sobre estas persistentes marcas da doença que se prolongam muito além da fase aguda, ainda não há certezas sobre as causas destes sintomas. A identificação das causas podia servir muitos objectivos e um dos mais importantes é a possibilidade de este conhecimento abrir portas a tratamentos. Os cientistas têm várias hipóteses em cima da mesa.

Há quem esteja a explorar os danos provocados nas mitocôndrias, que simplificando é uma espécie de bateria das células. Neste caso, o problema seria uma avaria na bateria provocada pela infecção e que a impede de se recarregar normalmente. Mas há também quem investigue estes problemas como uma doença auto-imune, em que vemos os anticorpos que foram produzidos para combater o vírus invasor a virarem-se agora contra o hospedeiro. Depois há ainda quem esteja a olhar para estas queixas como consequências das duras cicatrizes deixadas nos pulmões e vasos sanguíneos com a passagem deste novo coronavírus. Em resumo, ainda não se sabe e o mais provável – como acontece com muitos outros problemas de saúde – é que as queixas dos muitos doentes recuperados da covid-19 sejam o resultado de uma combinação de factores e de múltiplas causas.