Com a violência doméstica agravada pelo preconceito, ela aceitou ajuda e libertou-se

Estereótipo negativo sobre mulheres brasileiras foi usado para justificar mais controlo e violência. Primeiro, o ex-companheiro não quis que trabalhasse, depois fê-la perder emprego. Numa casa-abrigo, a técnica de enfermagem depressa encontrou lugar no mercado de trabalho. Quarto capítulo de uma série sobre inclusão laboral.

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Nelson Garrido

Não sai de casa sem a unidade de protecção da vítima, um pequeno aparelho que apita caso o ex-companheiro se aproxime. “Ele disse tantas vezes que me mata, que me arranca a cabeça.” Desde que ele usa pulseira electrónica, ela já não investiga perigo em cada esquina. Cruzando a porta do trabalho, sente-se segura. Na portaria têm o nome dele. Não o deixam entrar.

Os sinais estavam lá desde o princípio, ainda no Brasil. Era demasiado inexperiente para os ver. Tinha 16 anos. Num instante, ficou grávida. Ele pediu-lhe que não usasse saias curtas, nem blusas com decote. “Ele quer que eu seja aquela mãe de família, ele diz isso para me proteger”, pensou. Proibiu-a de ter amigos, só podia ter amigas. “Ele já foi casado. Isso é coisa de casado. Isso é amor”, pensou também.

Resistências a estudar e trabalhar

Já com uma criança nos braços, quis trabalhar. A avó sugeriu que estudasse enfermagem. Pagar-lhe-ia o curso técnico. “Teve ali um pouco de resistência”, recorda. “Não precisas, eu trabalho; não tem como conciliar tudo”, argumentou ele. A mãe e a avó contrapuseram: “Não, eu ajudo. Tens de ter uma profissão. Tens de trabalhar.” Muito lhes agradece esse passaporte para a libertação.

Nunca foi fácil. Acontecia ter de sair mais cedo ou chegar mais tarde para fazer algum trabalho. “Ele me insultava. Dizia que eu estava com homens.” Ligava-lhe, revistava-lhe o telemóvel, vigiava-a. As conversas com colegas e professores levaram-na a questionar aquele comportamento. E a contestá-lo. As discussões estouraram. Corria para casa da mãe ou da avó. “As coisas acalmavam. Ele ia lá.” Entretanto, já ia no segundo filho. Nem a avó, nem a mãe lhe diziam: “Separa, vem para cá, fica na minha casa, eu te ajudo.” Diziam-lhe: “É teu marido, tens tua casa, tens tuas coisas.” E ela voltava, com cada vez menos vontade.

Mantinha a cabeça baixa na sua presença. “Tinha medo de levantar a minha cabeça porque ele dizia que eu estava a olhar para algum homem. Às vezes, estávamos num restaurante e ele começava: ‘Vamos embora.’ ‘O que foi?’ ‘Não paras de olhar para aquele homem.’ ‘Que homem?’” Durante muito tempo, nem lhe permitia abrir uma conta numa rede social. Quando autorizou que aderisse ao Facebook, reservou-se ao direito de dizer que amizades podia ou não aceitar. Protegia o telemóvel dele com palavra-passe, mas o dela tinha de ficar desprotegido. “Ele chegava do trabalho e pegava no meu telemóvel e ficava olhando.”

Um dia, ela levantou a cabeça e disse que aquilo não estava certo, que ia bloquear o telemóvel. “Se tens tua privacidade, porque não posso ter a minha?” Uma explosão como nunca vira. “Teve uma agressão muito forte.” Quer a mãe dela, quer a irmã dele assistiram. “Foi quando nos separámos mesmo.” Não chegou a ser julgado. “Eu, com pena por conta dos meninos, fui lá e retirei a queixa.”

Organizou-se. A avó comprou uma pequena casa para ela e para os filhos, que já eram três. “Confesso que estava difícil conciliar. A casa era longe da família. Tive de colocar os meninos na escola pública. Os meninos odiavam. É horrível. Mal tem aulas.” O ex-companheiro resolveu tentar a sorte em Portugal e telefonava com frequência. As crianças choravam com saudades dele. Ele desafiou-a. “Vem para cá. Estou mudado. Estou mais tranquilo.”

Aquela conversa, repetida, acabou por ter efeito. “Ainda tinha algum sentimento. Meus meninos ficaram todos animados. Eu pensei: posso ir para Portugal e dar uma qualidade de vida melhor para eles.” Vendeu os móveis, arrendou a casa e ainda pediu dinheiro emprestado. Além dos passaportes, dos bilhetes, teve de comprar roupas de inverno. Não esperava que a violência escalasse, como veio a acontecer. “Lá no Brasil, quando tinha briga, eu agarrava nos meninos e ia para casa da minha família. Em Portugal, eu não tinha ninguém.”

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Nelson Garrido

Perseguições até perder o emprego

O preconceito que assombra as mulheres brasileiras tornou-o ainda mais obsessivo. “Aqui em Portugal, todas as brasileiras são putas”, dizia-lhe. “Os homens vão olhar para ti, vão pensar que tu és uma puta. Não fales com nenhum homem.”

Não queria que ela trabalhasse. Ela insistia. E arranjou trabalho num lar de idosos. Parecia-lhe perfeito. “Minha chefe era brasileira. Era pertinho de casa. Só tinha mulheres trabalhando.” Ele aceitou. Ao perceber que havia um fisioterapeuta a frequentar o lar duas a três vezes por semana, “enlouqueceu”.

Aproveitava o tempo livre para a vigiar. Viu-a cruzar-se com o fisioterapeuta e dizer bom dia. “Foi uma briga enorme.” As colegas viam-no horas em frente ao lar. Perguntavam-lhe: “O que é que teu marido faz ali?” Fê-la faltar várias vezes. “Ele saía na minha frente correndo e trancava a porta.” Ligava-lhe amiúde. Se não atendesse o telemóvel, por estar a dar banho a um idoso ou a fazer outra coisa qualquer, ligava para o telefone fixo. “Eram muitas chamadas. Até que conseguiu que a minha chefe chegasse para mim e dissesse: ‘Assim não dá. Vou ter de te demitir. Vai resolver a tua vida.’”

Uma vizinha, de quem se tornou amiga, incentivava-a a chamar a polícia. “Tenho muito medo”, respondia. Ainda não tinha autorização de residência. “Vão me mandar para o Brasil.” Antes de voltar, queria ganhar algum dinheiro para pagar as dívidas e recomeçar. “Fui levando isso.” Até que a vizinha chamou mesmo a polícia.

A polícia sugeriu-lhe que fosse para uma casa-abrigo para vítimas de violência doméstica. “Não vim para Portugal para isso”, reagiu. “Que vergonha!” Ia voltar para casa? Telefonou a um primo, tolhida pelo embaraço. E ele acolheu-a e à criança mais pequena. As outras tinham preferido ficar com o pai, o companheiro de jogos, pizza e pipocas. Foi buscá-las. Nova briga.

A polícia explicou-lhe que teria de iniciar um processo de regulação das responsabilidades parentais. Quando o processo deu entrada, ele descobriu que ela estava a ficar em casa do primo. “Não tive paz.” Uma agonia. “Tenho de sair daqui. Tenho de ir para um lugar que ele não saiba onde é”, disse ao primo. Uma amiga dele acolheu-a. Quando se apresentou em tribunal, não tinha emprego, nem casa. Recomendando-lhe que voltasse quando tivesse meios, a juíza retirou-lhe a criança e entregou-a ao pai. Nem consegue narrar a dor. “Sair de casa sem os meus filhos foi o maior erro da minha vida.”

Recuperou o trabalho. Arrendou um quarto. A cada visita aos filhos, uma briga. “Até que teve uma agressão enorme.” “Você sabe quantas vezes já apresentou queixa contra ele?”, perguntou-lhe o polícia. 

Na esquadra, voltaram a falar-lhe na Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica. Explicaram-lhe que a ajudariam a recuperar-se e a recuperar os filhos. E ela entendeu que talvez aquela fosse a sua única hipótese. Já com autorização do tribunal, foi com a polícia buscar a criança mais pequena à escola e seguiu com ela para uma estrutura de emergência, noutra cidade. Naqueles três meses, recompôs-se emocionalmente. Ainda ficou um ano e meio numa casa-abrigo, numa terceira cidade, até sair, com autonomia financeira, os filhos a cargo, alguma segurança.

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Recomeçar a trabalhar

A não ser que consigam uma transferência do posto de trabalho, as vítimas entram nas casas-abrigo sem emprego ou em vias de o perder. O estatuto de vítima confere-lhes acesso preferencial aos programas de formação profissional. O Instituto de Emprego e Formação Profissional definiu interlocutores específicos.

Para lá de todo o desgaste físico, psicológico e emocional, há mulheres que chegam ali sem qualquer experiência de trabalho fora de casa. Algumas já têm mais de 45 anos. “Os reduzidos níveis de educação formal [...] constituem uma desvantagem importante”, lê-se no estudo “Processos de Inclusão de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica”, organizado por Maria das Dores Guerreiro em 2015. “A aposta na formação pode constituir uma via de valorização”. E algumas fazem-no, mas o emprego “é a prioridade, dada a saída do relacionamento abusivo, o carácter temporário do acolhimento e a necessidade de responder aos encargos financeiros associados a uma vida autónoma, que implica em grande parte dos casos despesas com os filhos menores”.

A fuga, tantas vezes à pressa, sem nada ou com quase nada, para um sítio seguro, tende a deixar estas pessoas sem retaguarda familiar. O referido estudo aponta para os horários de trabalho “incompatíveis com os horários das crianças”. E para outros constrangimentos, como a “falta de transportes ou a distância alargada, a inexistência ou dificuldade de acesso a serviços de apoio às crianças”. E os baixos salários. E as falhas nos pagamentos. 

Mas a economia vivia um bom momento. A taxa de emprego estava elevada. Como tem formação e experiência numa área vital, num instante arranjou lugar. A equipa da casa-abrigo incitava a procura online. E ela viu um anúncio. Respondeu. Compareceu na entrevista. “Eles pedem morada e eu não podia dar a morada da casa-abrigo [que tem de se manter confidencial, por uma questão de segurança]. Fiquei com vergonha, mas contei tudo. Foram bastante compreensivos.” Dão-lhe um dia extra sempre que precisa de ir ao tribunal.

Tinha a outra grande dificuldade: a da conciliação da vida laboral com a vida familiar. Enquanto esteve na casa-abrigo, a equipa deu-lhe apoio. “Quando o horário era um bocadinho depois, iam buscar meus filhos.” Quando saiu, já tinha uma amiga, a cabeleireira das crianças, disposta a fazer isso.

No pequeno apartamento, sente-se muito orgulhosa. Com a especulação que para aí vai, parecia impossível encontrar habitação a um preço que pudesse pagar. Não fosse a chefe tê-la ajudado, estaria em habitação social, como acontece a algumas vítimas com filhos.

Até há uns meses, não se sentia segura. Hesitava em cada passo. Ele aproveitava-se das crianças para obter informações. “A tua mãe está aí? O que está fazendo?” Apesar dos riscos, as crianças falavam com o pai ao telefone e iam visitá-lo. Já na pandemia, estando o concelho do pai em risco elevado, a mãe pediu ao tribunal que não fossem naquele fim-de-semana. Por telefone, a criança mais velha revelou que iam à praia. E o pai apareceu, com outros dois adultos, decidido a levar as crianças. Mais uma agressão. “Veio a polícia. Foi quando lhe puseram pulseira electrónica.”

A guarda tornou-se exclusiva da mãe. Os contactos com o pai passaram a ser intermediados pelo Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental. As crianças só vão a casa dele porque ela permite. A de sete anos fica confusa. A de nove chora quando se separa da mãe e chora quando se separa do pai. A de doze revolta-se. “Ele diz aos meninos que eu tinha homens e por isso me castigava. Chegou a mostrar vídeos pornográficos com pessoas de rosto coberto para dizer que eu fazia aquilo.” Crê que, com a ajuda das psicólogas, essa imagem se desfez na cabeça das crianças mais novas. Da mais velha não. “Acredita em tudo o que o pai diz. O medo que eu tenho é que cresça a achar que isso é certo.”

Às vezes, tem vontade de lhes dizer que o pai é um agressor, mas cala-se. “Acho que é conversa de adulto. Queria que esquecessem, que fossem crianças normais.” E o que iria ela acrescentar? “Ele dizia na frente deles: ‘Eu vou-te matar!’ Eles sabem, mas não querem dizer, porque não querem que o pai vá preso…”

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Ter estabilidade laboral

Não sabe quando voltará a ter uma relação amorosa. Para já, nem quer pensar nisso. Ter autorização de residência e contrato sem termo ajuda-a a encarar o futuro. 

“No começo, só queria juntar dinheiro para voltar para o Brasil”, diz. “Depois que eu passei por essas casas, me sinto capaz. Quando chegou a residência, vendo que os meninos gostam da escola, que temos médico de família, que estou efectiva, pensei: vou tentar fazer a minha vida aqui com os meus filhos. Se eu for para o Brasil, ele vai para lá e vai começar tudo de novo. Não me sinto segura de ir.” Aqui, sente-se. Pelo menos enquanto ele usar pulseira electrónica.