Num ano, 1600 pessoas passaram por casas de abrigo. O que lhes aconteceu depois?

Vítimas de violência doméstica chegam com os filhos e com poucas armas para se autonomizarem. O que é feito para que se emancipem? Estudo faz retrato.

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Há 37 casas de abrigo em todo o país para vítimas de violência doméstica Nelson Garrido

Vivem “situações de elevado isolamento social, têm dívidas suas ou dos ex-parceiros, são desempregadas de longa duração”. Uma “parte considerável” tem fracas qualificações. Três quartos trazem os filhos. É este o perfil das mulheres que recorrem a uma casa de abrigo para vítimas de violência doméstica. Foram 823, em 2013, e levaram consigo 835 crianças. Ou seja, mais de 1600 pessoas num só ano. Ficaram a viver nestas estruturas seis meses, em média. E depois? O que se seguiu?

A “qualidade da intervenção” das casa de abrigo reflecte-se “em indicadores como o não retorno ao relacionamento violento, a estabilização psicológica e o aumento das competências pessoais, sociais e parentais” das vítimas, segundo um estudo concluído em Fevereiro.

Mas também há fragilidades: não estão a “verificar-se generalizadamente processos de aumento das qualificações escolares e profissionais” das vítimas e é urgente “repensar as lógicas e os modos de funcionamento das medidas de apoio ao emprego que presentemente estão disponíveis para estas pessoas”. É o que se lê em Processos de Inclusão de Mulheres Vítimas de Violência Doméstica, um projecto do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia e do ISCTE, do Instituto Universitário de Lisboa, coordenado pela socióloga Maria das Dores Guerreiro. Ontem mesmo o Governo assinou cartas de compromisso com nove entidades gestoras de estruturas de atendimento e acolhimento de vítimas de violência doméstica atribuindo-lhes mais quase meio milhão de euros para reforço da sua intervenção.

O estudo, que foi financiado pelo Programa Operacional de Assistência Técnica do Fundo Social Europeu, deixa várias recomendações. Algumas relacionam-se com o funcionamento das próprias casas (na maioria geridas por instituições de solidariedade), mas o grosso das recomendações dirigem-se a outros interlocutores. Por exemplo, ao nível da legislação do trabalho, sugere-se, entre outros, que se “acautele o direito a subsídio de desemprego, quando o despedimento por iniciativa própria ou o abandono de posto de trabalho são comprovadamente motivados por violência doméstica”. No que diz respeito à habitação, sublinha-se a importância de criar um “subsídio ao arrendamento para vítimas de violência doméstica”.
Em causa estão situações complexas. Quem precisa de recorrer a uma casa de abrigo é, muitas vezes, como nota Dores Guerreiro ao PÚBLICO, quem está “mais desmunido de recursos de vária índole”: “Quem tem outros apoios — humanos e materiais — pode não recorrer a casas de abrigo.”

Um agregado por quarto
Comece-se então pelo início deste “processo de inclusão”: pela chegada das mulheres às casas de abrigo — existem 37, mas o estudo considera 36 porque uma das entidades gestoras inquiridas preencheu apenas um questionário em nome das duas casas que formalmente a integram.

Excerto de uma das entrevistas feitas a utentes: “Eu primeiro neguei, disse que não tinha sido nada. Depois, quando o agente voltou, o meu filho já estava acordado. E quando eu fui abrir a porta, eu tinha o menino ao colo. E depois ele disse: ‘Olhe lá bem para o seu filho.’ E eu comecei logo a chorar, pronto, aí já não me aguentei! Ele disse: ‘Quer-me contar alguma coisa, não quer?’ E ele [o agressor] estava na cozinha, veio logo para a sala e começou-me a dizer: ‘Não há nada para contar, pois não? Estávamos só a discutir.’ Aí, pronto, desbronquei-me toda! Eu disse: ‘Não, não estávamos a discutir, bateste-me! Agarraste-me pelo pescoço e eu estou farta de ti! E só não me vou embora porque não tenho para onde.’ E o agente disse-me: ‘Tem! Pode vir comigo agora mesmo! Pegue no seu filho, nas coisas de que precisa, e venha comigo, agora mesmo!’ E foi assim [que eu saí de casa a primeira vez].”

A regra é alojar um agregado familiar por quarto. A localização das casas é mantida confidencial, para segurança das vítimas. As crianças são colocadas nas escolas, as “casas” ajudam com os pedidos de apoios sociais ou financeiros decorrentes da nova situação da família (candidatura a habitação social, por exemplo), organizam-se as rotinas da utente. Para além do alojamento, da alimentação, as vítimas recebem sobretudo apoio jurídico (essencial em muitos conflitos), social e psicológico — o encargo por utente, segundo as entidades gestoras, é, em média, de 720 euros por mês; a Segurança Social comparticipa em média com 650.

Adaptação difícil
Todos os representantes das casas referiram ainda a inscrição das utentes no centro de emprego e grande parte indicou a articulação com “pontos focais para a violência doméstica” no Instituto de Emprego e Formação Profissional. Mas “obter emprego é o item que mais casas de abrigo indicam não ser atingido durante o período de permanência na casa”.

A adaptação às casas “é consensualmente considerada como um processo difícil”. Excerto de uma das entrevistas feitas a responsáveis pelas casas: “Nós damos as regras principais num panfleto pequenino para que elas possam ler [...]. Se bem que não seja assim tão grave, se não entram às nove entram às dez, desde que seja conversado, e não incomode as outras, é isso que tentamos. Portanto, eu diria que há muitas regras, do ponto de vista da utente, há. É uma instituição.”

O estudo sugere que “seria vantajosa a progressiva adaptação das casas de abrigo a espaços com menor número de vagas, de preferência apartamentos unifamiliares”. Sugere também a revisão dos regulamentos nos casos em que eles “restrinjam excessivamente” os direitos das utentes.

Repensar as casas de abrigo como uma resposta também para crianças e jovens é outra proposta — porque dificilmente as mulheres podem ir procurar trabalho, ou formação, se não têm com quem deixar os filhos. Sugere-se que as casas contratem ou disponibilizem “auxiliares aptos à guarda das crianças”.

Ainda assim, Dores Guerreiro faz questão de sublinhar: “Muitas mulheres referem o modo como através do apoio das casas de abrigo e dos técnicos e das técnicas que com elas trabalham foram ‘empoderadas’, obtiveram autonomia, capacidade de decisão, de pensar por si próprias, por oposição à sua trajectória passada de submissão.”

Os autores não esquecem aquilo que é referido por muitas das entrevistadas: “Eu tinha preferido ficar em casa e ele ser obrigado a sair. Porque ele é que é o agressor”, diz uma. “Eu é que tenho de andar fugida. Eu é que tenho de sair do trabalho. Eu é que tenho de sair de casa”, lamenta outra. Defendem, por isso, que a penalização dos agressores não pode ficar-se por uma pena suspensa — em 2013, 89% das condenações pelo crime de violência doméstica culminaram com a suspensão da execução da pena de prisão aplicada. “Passa a mensagem de que se trata de um crime menor e a vítima não fica protegida.”

Lembram por fim o projecto de lei do Governo, já aprovado na generalidade, que propõe que o arguido esteja, durante o tempo de duração da suspensão, sob vigilância permanente dos serviços de reinserção social e que, durante esse tempo, a vítima beneficie de protecção através de teleassistência, por exemplo. Uma medida que deve ser acompanhada, sustenta-se, da “obrigatoriedade de o agressor frequentar programas específicos de prevenção da reincidência da violência doméstica”.

Cursos à medida?
O sistema está a falhar no que diz respeito à promoção da emancipação económica destas mulheres? “Eu diria de outro modo: as medidas existentes, mesmo quando funcionam em pleno, revelam-se insuficientes e, por vezes, inadequadas para atender ao perfil e às necessidades efectivas das mulheres vítimas de violência doméstica que são acolhidas em casas de abrigo”, responde Maria das Dores Guerreiro.

“A aquisição de qualificações por parte de quem tenha estado muito tempo isolada e retirada do mercado de trabalho ou nunca tenha exercido actividade profissional pode ser um processo moroso, desajustado do tempo padrão de acolhimento em casa de abrigo. Por outro lado, o valor das bolsas de formação é reduzido e insuficiente para as mulheres entretanto sobreviverem, pagarem as despesas da casa, da alimentação, etc, sobretudo se têm filhos com elas”, diz a socióloga. “Logo, acabam por desistir da obtenção de qualificações e procuram ingressar tão rapidamente quanto possível em empregos precários, mal remunerados, que lhes asseguram pouca autonomia do ponto de vista económico.”

O estudo defende a criação de “cursos de formação profissional para vítimas de violência doméstica — ou em que estas constituam um dos seus tipos de destinatários privilegiados”. Lembra-se que noutras geografias “formações personalizadas dirigidas especificamente a mulheres vítimas, com uma forte componente prática e de relação com entidades empregadoras e com montantes que possibilitem e incentivem a sua frequência” tiveram sucesso. Dão o exemplo do Programa Cualifica na Andaluzia. No capítulo “inserção profissional” diz-se que seria de “ponderar a inclusão de cláusulas de género nos concursos públicos, que atendam à condição de vítima de violência doméstica”.

Questionada pelo PÚBLICO, Teresa Morais, secretária de Estado da Igualdade, mostra ter dúvidas sobre a eficácia de cursos específicos para vítimas, “embora isso possa ser estudado”. É que, diz, as pessoas “têm interesses muito diversificados”.

Mas Teresa Morais garante que a formação e o emprego não estão a ser esquecidos no processo de inclusão das mulheres. “De Abril de 2012 a 31 de Maio deste ano 1446 vítimas foram atendidas” em centros de emprego, por grupos especialmente sensíveis a esta questão, diz, e 773 “tiveram colocação em posto de trabalho, ou em medida de emprego e formação profissional ou noutras, como estágio remunerado”. Lembra ainda que empregadores que contratem vítimas “têm direito a um apoio” do Estado.

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