A Suécia não é Woodstock, mas há quem sinta a falta de máscaras

Tiago gosta de não haver alarmismo na Suécia, Isabel não se sente segura e Wesley fala em desconforto: três visões diferentes de viver num país escrutinado por uma opção diferente de lidar com a covid-19, no dia em que foram anunciadas mais restrições.

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Centro de testes da covid em Malmö Reuters/TT NEWS AGENCY

Tiago Franco está farto de ver o sítio onde vive ser usado como bola de arremesso entre dois campos opostos: ora são os negacionistas que acham que a Suécia é “o Woodstock”, sem restrições; ora são os partidários de confinamentos que apontam qualquer subida de infecções como exemplo de desgraça para quem não decreta restrições. “Ambos estão errados.” 

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Tiago Franco está farto de ver o sítio onde vive ser usado como bola de arremesso entre dois campos opostos: ora são os negacionistas que acham que a Suécia é “o Woodstock”, sem restrições; ora são os partidários de confinamentos que apontam qualquer subida de infecções como exemplo de desgraça para quem não decreta restrições. “Ambos estão errados.” 

Já Isabel (que prefere não ver o apelido publicado) não consegue perceber como é que os hospitais e locais onde são prestados cuidados de saúde a pessoas de risco não impuseram, até esta semana, o uso de máscara. Agora, teme os efeitos da segunda vaga. “O director de um hospital da zona pediu às pessoas para não fazerem ski, montanhismo, e evitarem mesmo andar de carro para não irem parar às urgências”, diz. A ideia é poupar ao máximo os recursos escassos.

Wesley Mills Eskonen faz, por outro lado, parte do grupo de pessoas que não pode evitar ir trabalhar, o que é “desconfortável”, admite. Conta que, mesmo não havendo restrições obrigatórias, há muitas coisas que fecharam em Estocolmo: “Fui a pé à chamada zona da cidade velha comprar uns enfeites de Natal e estava vazia. Foi arrepiante.”

Tiago, Isabel e Wesley, três estrangeiros a viver na Suécia, contaram ao PÚBLICO, em conversas por videochamada, como é este tempo de pandemia e o que é menos bem percebido por quem não vive no país - a Suécia está no meio de uma segunda vaga e o Governo anunciou, esta sexta-feira, as medidas mais restritivas desde o início da pandemia

Tiago Franco, engenheiro de software na Volvo, a viver em Gotemburgo, a segunda cidade sueca, diz que está farto da “obsessão de Portugal com a Suécia”, e pergunta: “Porquê? Por que não falam de outros exemplos, como a Bélgica?” Afinal, a Bélgica é o país com maior taxa de mortalidade por número de habitantes.

Os dois lados procuram dados para confirmar o que já pensavam e exageram. As autoridades suecas “nunca disseram para as pessoas fazerem a vida normal”, sublinha – há recomendações para teletrabalho, limites a ajuntamentos, respeito da distância física, desinfecção das mãos, ninguém deve sair de casa se tiver algum sintoma. “Não é a libertinagem”, diz.

E por outro lado, “também não escreveram a sua estratégia na pedra, já a foram adaptando”, diz. Foram diminuindo o número máximo de pessoas que podem estar juntas, admitindo que houve erros nos lares.

Algumas medidas não são assim tão diferentes na Suécia ou em Portugal, aponta Tiago: em ambos é preciso desinfectar as mãos para entrar numa loja, por exemplo. “Em Portugal, quando aí estive no Verão, estava um segurança à porta a ver se as pessoas desinfectavam”, conta, na Suécia não. “A maior diferença que notei foi que em Portugal senti vigilância no espaço público, aqui, as pessoas autovigiam-se”.

A base da estratégia sueca são recomendações e não obrigações, e além disso não há impedimentos à circulação (apenas uma recomendação para que as pessoas não se afastem mais de 200 quilómetros da zona de residência). Nas novas restrições está uma diminuição dos grupos que podem estar juntos em restaurantes, por exemplo, e uma proposta de proibição de venda de álcool a partir das 20h.

Mas onde a Suécia se destaca, e muito, é na não recomendação de uso de máscara. Esta mudou um pouco na última semana: primeiro passou a ser recomendada em hospitais e locais de prestação de cuidados médicos, e esta sexta-feira também nos transportes públicos, nas horas de ponta.

Isabel, que mora há mais de 20 anos no país, é muito crítica da estratégia da Suécia e o facto de não se usarem máscaras em ambiente de cuidados de saúde, em que médicos ou enfermeiros vêem dezenas de doentes de risco, em salas fechadas sem possibilidade de distanciamento, é algo que não consegue perceber.

Ainda assim, acha que em parte se deve a uma característica dos suecos: a grande confiança nas autoridades e, sobretudo, nos médicos. “Aqui, é muito raro alguém perguntar a razão de um tratamento ao médico, e é raríssimo pedir-se uma segunda opinião.”

Em relação à máscara, que sempre usou no supermercado, salienta que antes muito poucas pessoas a usavam. “Piscávamos o olho uns aos outros”, conta. Agora vê mais, sobretudo entre mulheres e homens estrangeiros – provavelmente, imagina, porque estes terão como fonte primeira de informação a que é vinda dos seus próprios países.

Isabel conta que ao passar um dia pelo centro de carro viu uma pequena manifestação, de 15 pessoas, a favor do uso de máscaras. “Tive pena de não ter tirado uma fotografia!”

Já quando passou por Lisboa, Tiago viu uma manifestação anti-restrições, e ficou espantado quando ouviu um orador dizer: “Obrigado, Suécia!”, como se no país a vida continuasse normalmente.

Tiago e Isabel têm uma visão um pouco diferente da pandemia – ele gosta de na Suécia “não haver alarmismo”, ela acha que houve “arrogância” e medidas insuficientes.

Ambos explicam algo que não será bem percebido em Portugal: os lares. As autoridades admitiram erros na gestão que fizeram e uma comissão apresentou esta semana um relatório muito crítico pelo grande número de mortos nos lares, que era impossível de evitar dado o grau de transmissão do vírus na comunidade, disseram.

Mas os lares na Suécia, salientam, são muito diferentes dos de Portugal, por exemplo. Com uma boa rede de cuidados domiciliários, a maior parte dos idosos vive em casa, com apoio. Apenas quem tem mesmo necessidade de acompanhamento permanente está num lar. Ou seja, muitas pessoas que já estariam no fim da vida.

Falta de testes

Wesley Mills Eskonen, americano a viver na Suécia há quase dez anos e em Estocolmo há seis, está numa situação diferente de Tiago e Isabel, ambos em teletrabalho.

É professor e na maioria dos graus tem-se mantido o ensino presencial, mas ao menor sintoma – basta uma tosse – os alunos ficam em casa, e por isso, diz, “os miúdos estão sempre a aparecer e desaparecer”.

A dada altura, toda a família de Wesley ficou doente. Ele foi o primeiro, “mas nessa semana não havia testes suficientes porque havia uma sobrecarga de casos suspeitos, e não consegui fazer o teste”.

Na semana seguinte foi o marido a ter sintomas, e aí já foi testado, e o resultado foi positivo. O filho, de dois anos, teve tosse. “Mas aqui dificultam tanto, tanto a testagem de crianças, que acabámos por não fazer”, comenta. No entanto, partem do princípio de que esteve doente. Todos recuperaram totalmente, apenas o marido continua sem olfacto nem paladar.

Onde terá sido infectado? “Não sei. Não ando de transportes, vou a pé para a escola, e não vou quase a lado nenhum. Penso que o mais provável é que tenha sido na escola.”

Wesley também nota que grande parte do que é entretenimento optou por encerrar, em especial durante o último mês, apesar de não ser obrigatório. “A única coisa aberta é o parque infantil”, afirma, rindo.

Nas restrições anunciadas esta sexta-feira, todas as actividades não essenciais geridas pelo Estado ou municípios vão fechar pelo menos até 24 de Janeiro: museus, bibliotecas, piscinas, etc. Ginásios, lojas e centros comerciais vão ter limite do número de pessoas a determinar localmente.

“Estamos a fazer o que fizemos durante esta pandemia, as medidas certas na altura certa”, disse o primeiro-ministro, Stefan Löfven. O número de infecções diário chegou esta sexta-feira a 9659, e morreram mais 20 pessoas.

Com um total de 7998 mortes desde o início da pandemia, a Suécia destaca-se entre os seus vizinhos nórdicos, mas não está numa situação tão má em termos de taxa de letalidade como outros países que optaram pelo confinamento. Numa conferência de imprensa na quinta-feira, Anders Tegnell, director da Agência Pública de Saúde, que gere o combate à pandemia na Suécia, disse que “não há dados que permitam dizer que os confinamentos funcionam”, já que há países com confinamento que continuam com taxas de transmissão elevadas e outros não.