Profissionais de saúde impedidos de sair do SNS durante o estado de emergência

Governo trava saída de enfermeiros, médicos e outros trabalhadores do Serviço Nacional de Saúde que sejam considerados essenciais para assegurar a resposta nesta fase crítica da pandemia.

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Paulo Pimenta

Os profissionais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) não podem sair enquanto durar o estado de emergência, caso se considere que são essenciais para assegurar a resposta das unidades em que trabalham, nesta fase crítica da segunda vaga da epidemia de covid-19.  Este impedimento transitório está estabelecido num despacho do Ministério da Saúde que permite a “mobilização” dos trabalhadores dos serviços e estabelecimentos do SNS que pediram a rescisão dos seus contratos nas últimas semanas. Publicado no início desta semana, o despacho já está a ser alvo de contestação. 

A ministra Marta Temido delegou, por despacho, no secretário de Estado adjunto “a competência para determinar a mobilização de trabalhadores dos serviços e estabelecimentos do SNS” que “requeiram a cessação, por denúncia, dos respectivos contratos de trabalho”, tendo em vista “a garantia de resposta” dos serviços, uma medida excepcional que está prevista no decreto do estado de emergência. “A aferição das circunstâncias concretas em que a mobilização dos trabalhadores "se venha a justificar, atenta a indispensável ponderação da sua adequação e proporcionalidade, deve ser feita pelos ditos serviços e estabelecimentos do SNS” e terá que ser “devidamente fundamentada quanto aos trabalhadores em causa e à essencialidade de sua mobilização”, refere o despacho.

Mas há já pelo menos um grupo de 18 enfermeiros com experiência em cuidados intensivos cujos pedidos de exoneração do Centro Hospitalar de Lisboa Norte (CHLN) - que integra os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente - ficaram suspensos e que está a tentar contestar juridicamente o teor deste despacho. Os 18 enfermeiros pediram a cessação dos seus contratos para irem trabalhar para outros hospitais, sobretudo do sector privado, mas foram na terça-feira informados por e-mail que os processos ficavam suspensos enquanto durar o estado de emergência.   

Filomena Gonçalves, de 35 anos, 12 de experiência em cuidados intensivos, ficou perplexa quando viu o e-mail da administração do centro hospitalar. O seu processo de rescisão tinha ficado concluído em 26 de Outubro, já tinha negociado um contrato num hospital privado que lhe ofereceu “melhores condições”, e acordara dar apenas um mês de aviso prévio ao Santa Maria (legalmente são dois), aproveitando as férias que tinha por gozar e as horas extraordinárias. 

“Está a sair muita gente mas não se tenta negociar com as pessoas” numa altura em que os privados estão “a expandir-se, têm cada vez mais clientes porque o SNS está decadente”, critica. Filomena garante que não foi apenas a questão monetária que a fez querer sair. Os privados também oferecem “progressão na carreira”, enquanto no SNS a carreira “está congelada”, diz a enfermeira que se queixa de ganhar agora “o mesmo que ganhava quando começou a trabalhar”.   

“Isto é uma espécie de requisição civil, é um atentado à liberdade e à democracia”, considera Gorete Pimentel, do Sindicato Independente de Todos os Enfermeiros Unidos (SITEU). “Mesmo que seja uma reclamação retórica, porque aparentemente não poderemos fazer nada durante o estado de emergência, não vamos aceitar isto calados e de cabeça baixa”, assegura. 

"Fazer tudo para reverter esta situação"

A direcção do SITEU está "a fazer tudo para reverter esta situação e está empenhada em denunciar este atropelo”, corrobora Sónia Viegas, que é delegada sindical no Santa Maria e lá trabalha num serviço de cuidados intensivos. “Já estava tudo tratado e os meus colegas tinham dia para sair. Estão a mexer com a liberdade e com a vida das pessoas que procuram melhores condições de trabalho. Tiveram cinco meses para planear, já se sabia que a segunda vaga iria ser pior do que a primeira, e não fizeram nada. Provavelmente vão perder a oportunidade que tinham do outro lado. São vidas suspensas”, lamenta.

Além da procura dos hospitais privados, que disparou nas últimas semanas, muitos enfermeiros que tiveram que ir trabalhar para a capital estão agora a aproveitar esta “janela de oportunidade” para irem para perto da família, sobretudo no Norte do país, onde os hospitais abriram nos últimos meses reservas de recrutamento, e também há casos de enfermeiros que vão para o estrangeiro, descreve a enfermeira.

“Desde o início do ano saíram do centro hospitalar cerca de 180 enfermeiros, mas consegui contratar 165. Somos uma estrutura hospitalar dinâmica”, explica a enfermeira directora do CHLN, Ana Paula Fernandes, lembrando que já em Abril passado a ministra da Saúde emitiu um despacho idêntico que, além de impedir transitoriamente as saídas, suspendeu o gozo de férias. 

Mas Ana Paula Fernandes reconhece que a situação, sobretudo nos cuidados intensivos e outras áreas críticas, é agora muito complicada. “Até 11 de Novembro saíram 16 enfermeiros [sobretudo dos cuidados intensivos]. Só num dos serviços pediram para sair [agora] cinco, é uma equipa inteira. Alguns informam que vão sair de um dia para o outro”, relata.  “Não queremos reter ninguém, custa-nos fazer isto mas não temos alternativa. E a situação é transitório”, enfatiza. De resto, os hospitais públicos não podem competir com os privados. “O Santa Maria é uma escola, dá formação, mas, sempre que uma unidade abre, leva-nos profissionais.”

O PÚBLICO perguntou ao Ministério da Saúde se há muitos casos de enfermeiros, e, eventualmente, médicos e outros profissionais de saúde nesta situação, mas não obteve resposta. com Ana Maia

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