Minutos e gestos que salvam vidas

Perante sinais de alerta de AVC, não há tempo a perder. Ligar para o 112 é a primeira regra para que um doente seja rapidamente encaminhado e devidamente tratado. E mesmo em dias de pandemia, não há que ter medo em procurar ajuda. Neste Dia Mundial do AVC, comemorado a 29 de Outubro, recordamos alguns dos desafios na prevenção, tratamento e recuperação desta doença.

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Os Centros de Orientação de Doentes Urgentes (CODU) do Instituto Nacional de Emergência Médica (INEM) accionaram a Via Verde do Acidente Vascular Cerebral (VVAVC) por 1.996 ocasiões nos primeiros cinco meses de 2020. Os números do INEM foram divulgados em Junho e relembram a importância da actuação da VVAVC perante os principais sintomas de alerta: dificuldade em falar, falta de força num braço ou boca ao lado. Imediatamente após detecção destes sinais, é fundamental contactar o Número Europeu de Emergência - 112.

Segundo dados da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral (SPAVC), três portugueses sofrem um AVC, por hora e, por ano, em cada 1000 habitantes, dois sofrem um AVC. Existem dois tipos de AVC: isquémico (quando um coágulo impede o fluxo de sangue para o cérebro) e hemorrágico (quando se dá uma hemorragia por ruptura de uma artéria).

Existem vários factores que originam esta oclusão de uma artéria do cérebro a que se dá o nome de AVC, doença que continua a ser uma das maiores causas de mortalidade e morbilidade em Portugal. Além de ser imprescindível saber identificar os sintomas, perante uma suspeita de AVC, não se deve dirigir ao hospital antes de contactar o 112.

“Ao ligarem para o número de emergência, o CODU orienta o doente para um dos hospitais preparado para receber este tipo de emergência”, explica Ana Paiva Nunes, assistente hospitalar graduada de Medicina Interna e coordenadora da unidade de AVC  do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC). É sabido que a maior causa de atraso no tratamento de pessoas que têm um AVC deve-se ao facto de as mesmas se dirigirem ao hospital da sua zona de referência e “não activarem os serviços de emergência pré hospitalar”, refere Ana Paiva Nunes.

E, por mais que haja acesso a informação e campanhas de sensibilização, os sintomas que denunciam esta emergência não estão ainda interiorizados pela população. Uma das formas mais divulgadas para procurar ajuda de forma mais célere, é a regra dos 3 F’s: Fala alterada, Força diminuída ou Face desviada. Essa pode ser a diferença entre tratar o doente a tempo e salvar-lhe a vida e o oposto. “Quanto mais tarde tratarmos um doente com AVC pior será o prognóstico e o inverso também é verdadeiro: quanto mais cedo se tratar um doente com AVC melhor será a probabilidade de ter uma excelente recuperação”, explica a médica. 

Ao ser activado o CODU, o doente não perde tempo entre hospitais e é recebido numa sala onde lhe é realizado uma TAC, de imediato. “Se tiver indicação, começa logo a fazer o tratamento. Temos de ser muito rápidos e ter respostas terapêuticas inferiores a trinta minutos”, assinala Ana Paiva Nunes. A rápida intervenção de uma equipa especializada pode ser a chave do sucesso. 

Principais causas 

“Pode atingir pessoas de todas as idades. O AVC pode afectar, tanto o bebé, ainda na barriga da mãe, como os seniores”. A coordenadora da unidade de AVC do CHULC defende que, apesar de poder deixar sequelas para toda a vida, esta é uma doença que pode ser prevenida e/ou tratada de forma eficaz. Sabe-se que o sedentarismo, a hipertensão arterial, a diabetes, a dislipidemia, a obesidade e o tabagismo constituem factores de risco para o AVC.

Uma das principais causas desta doença, responsável por cerca de 30% dos AVCs isquémicos em todo o mundo, é a fibrilhação auricular (FA), a arritmia (alteração do ritmo cardíaco) crónica mais frequente que atinge seis milhões de pessoas na Europa e mais de 250 mil portugueses. Um em cada dez portugueses com mais de 70 anos desenvolve FA, ainda que a mesma possa afectar pessoas de qualquer faixa etária. Os médicos de medicina geral e familiar são essenciais na sua detecção precoce e, uma vez diagnosticada, na adequada adesão à terapêutica dos doentes. As palpitações – batimentos cardíacos acelerados e irregulares – por um período considerável – constituem um dos principais sintomas. Mas o doente pode também sentir tonturas, sensação de desmaio ou mesmo perda do conhecimento, dificuldade em respirar, cansaço, confusão ou sensação de aperto no peito. Por último, mas não menos relevante, a FA também pode desenvolver-se de forma assintomática.

Uma vez diagnosticada esta arritmia, existem vários medicamentos ao dispor dos doentes, mas é crucial não interromper a terapêutica. É que o esquecimento pode ser a diferença entre ter – ou não – um AVC. Quem sofre de FA tem um risco cinco vezes maior de vir a ter um AVC quando comparado com pessoas que não têm. “Um dia sem tomar a medicação pode ser o suficiente para provocar um AVC ao doente”, alerta Ana Paiva Nunes.

O impacto da pandemia de Covid-19 

Um inquérito realizado a nível nacional, em conjunto pelas principais entidades científicas nacionais dedicadas ao AVC, nomeadamente, a SPAVC, a Sociedade Portuguesa de  Neurologia (SPN), o Núcleo de Estudos de Doença Vascular Cerebral (NEDVC) a Sociedade  Portuguesa de Medicina Interna (SPMI) e a Sociedade Portuguesa de Neurorradiologia de  Intervenção (SPNI) veio sensibilizar profissionais de saúde, população em geral e  entidades competentes para o impacto potencialmente dramático da Covid-19 na  mortalidade e no estado funcional dos doentes com AVC. 

Segundo os resultados deste inquérito, divulgado em finais de Abril, a afluência de doentes aos Serviços de Urgência e Unidades de AVC foi significativamente afectada, já que apenas 22% dos inquiridos afirma ser relativamente semelhante, tendo diminuído também, consideravelmente, o número de doentes tratados nos centros em questão.

Os especialistas têm vindo a chamar a atenção para o controlo dos factores de risco que previnem ocorrência ou recorrência de um AVC, ou seja, para a necessidade de manter a terapêutica de controlo de factores de risco vascular, como por exemplo, anti hipertensores, estatinas, antiagregantes plaquetários, anticoagulantes e terapêutica para  diabetes, não existindo qualquer indicação para suspender nenhuma das terapêuticas  previamente prescritas pelos médicos assistentes.

A médica Ana Paiva Nunes comenta alguns dos resultados deste inquérito: “75% de todos os médicos referiram uma redução da afluência às unidades de cerca de 25% e 50% dos inquiridos relataram uma diminuição superior a 50%. Todos os médicos notaram uma redução muito significativa de recorrência dos doentes ao hospital pela Via Verde do AVC.” Quanto ao receio de procurar ajuda devido à Covid-19, a médica confirma que existem circuitos absolutamente diferenciados entre doentes Covid e não Covid nos hospitais e que estão acauteladas todas as protecções necessárias. “Além disso, um doente que tenha Covid-19 e sofra de um AVC não deixa de ser tratado”, sublinha. 

Um outro inquérito realizado pela Portugal AVC – União de sobreviventes, familiares e amigos, realizado entre 20 e 27 de Abril e ao qual responderam 868 sobreviventes de AVC, “91% dos doentes com indicação para cuidados de reabilitação reportaram terem sido obrigados a interromper os tratamentos ou não terem tido possibilidade de os iniciar. Por outro lado, apenas 15% dos inquiridos mantiveram as consultas de seguimento da forma habitual, durante a pandemia. 66% referiram adiamento das consultas sem possibilidade, sequer, de teleconsulta, só utilizada por 19% dos inquiridos”, revelou a associação em comunicado de imprensa. 48% dos sobreviventes com consultas agendadas, referiu ainda ter tido exames cancelados ou adiados durante este período. “No caso da unidade que coordeno utilizámos a teleconsulta e o contacto telefónico aos doentes. Nunca deixámos de entrar em contacto com os doentes para saber se estavam bem”, refere a médica internista.

Neste mesmo inquérito, cerca de um terço dos inquiridos, assumiu “sentir-se pior ou muito pior” relativamente ao seu estado geral de saúde, com a situação gerada pela pandemia. “A percentagem sobe para 44% entre os que habitualmente beneficiavam de cuidados de reabilitação, e atinge 50% nos que sofreram AVC há menos de um ano.” 

No hospital, as unidades de AVC tratam as fases agudas, mesmo em tempo de pandemia, mas o doente só recupera totalmente com reabilitação adequada e isso pode incluir terapia da fala, fisioterapia, terapia ocupacional e todas as vertentes da fisiatria. “O AVC pressupõe um contínuo de cuidados: não podemos efectuar uma parte do tratamento e deixar a reabilitação de lado até porque a mesma é tanto mais eficaz quanto mais precocemente for iniciada. Ao não acontecer durante dois meses, os doentes perderam imenso potencial de recuperação”, lamenta Ana Paiva Nunes, sublinhando o que isto representa em termos de menor qualidade de vida e prognóstico “com sequelas que poderiam ter sido evitadas.”