StayAway Covid: um pequeno passo na resposta à crise, um grande passo na perda de liberdades

A proposta de obrigatoriedade de utilização de uma aplicação móvel coloca em causa liberdades fundamentais e direitos individuais, sem uma finalidade objetiva e de uma forma desproporcional. Além disso, faz-nos questionar que rumo estamos a tomar e que modelos de governação procuramos legitimar.

O número de casos de infeção por covid-19 continua a aumentar, tendo o Governo português introduzido medidas mais restritivas e colocando o país novamente em estado de calamidade. Se a recomendação de utilização da app StayAway Covid de forma facultativa já gerava graves preocupações, a recente proposta de lei para tornar o seu uso obrigatório torna-as ainda mais prementes. Esta proposta levanta demasiadas questões, a vários níveis, relacionadas com a liberdade e privacidade dos utilizadores, com a aplicação da medida, com a discriminação de (tantas) pessoas e com a verdadeira utilidade e fiabilidade da aplicação.

No que concerne à liberdade e privacidade dos utilizadores, retira-lhes a possibilidade de poderem escolher que aplicações têm nos seus dispositivos. Há ainda que referir que, apesar de a app se encontrar entre as aplicações que usam um modelo descentralizado menos invasivo de rastreio por Bluetooth, em que os dados são armazenados nos telemóveis, não está isenta de perigos para os seus utilizadores. Isso mesmo foi referido pela Comissão Nacional de Proteção de Dados quando fez uma avaliação, em junho, sublinhando ainda a importância do caráter voluntário de instalação.

No que concerne à aplicação da medida, colocam-se também várias questões. Por exemplo, como é que vai ser feita a fiscalização pelas forças de segurança policial? Aleatoriamente na rua? Quem vai avaliar se as pessoas têm um smartphone “capaz de ter a aplicação instalada” e sob que critérios? Os agentes vão ter formação para perceberem quais os modelos de smartphone que podem ou não ter a aplicação instalada? E como será a interação com uma determinada pessoa, questionando se tem ou não a aplicação? Vão obrigar a pessoa a mostrar o telemóvel, a colocar o seu código de desbloqueio, se tem o Bluetooth ligado (condição essencial para que a aplicação esteja em funcionamento)? Sendo que a aplicação precisa de uma ligação móvel ou wifi, a inexistência de saldo poderá ser considerada punível? E nas localizações onde não há rede móvel ou de dados que funcione? Isto levantará questões discriminatórias, desfavorecendo claramente pessoas em situação de maior vulnerabilidade financeira.

Refere-se no documento da proposta de lei que a obrigatoriedade da utilização da aplicação acontecerá “em contexto laboral ou equiparado, escolar, académico, nas forças armadas e de segurança, e na Administração Pública”. Isso significa que quando as pessoas saírem do seu local de trabalho já podem desinstalar a aplicação, antes de irem para o seu tempo livre em casa? E, se assim for, em que sentido irão as forças de segurança fazer a fiscalização? Irão aos locais de trabalho (ou equiparados) pedir para verificar os telemóveis de quem ali está?

Também do ponto de vista da discriminação esta proposta levanta demasiadas questões. Muitas foram já referidas, nomeadamente a questão da necessidade de ter um telemóvel ou smartphone com determinadas características (e para apenas três sistemas operativos), bem como a necessidade de ter um plano de dados ou acesso a wifi. Mas existem outras. Há utilizadores que podem ter um equipamento compatível, mas sem a literacia tecnológica para instalarem uma aplicação. Outros que a possam instalar, mas sem literacia tecnológica quer para a utilizarem, quer para fazerem escolhas informadas sobre as suas opções de privacidade. Estamos assim novamente a aumentar o fosso com base na literacia digital, muitas vezes relacionada com a situação socioeconómica das pessoas.

Quanto a questões de utilidade e fiabilidade da aplicação, não será a instalação obrigatória que os resolverá. Se bem que, segundo dados da Pordata, a utilização por pessoas com atividade laboral ativa (incluindo funcionários das forças armadas e de segurança, e da Administração Pública) e estudantes faria com que a aplicação fosse instalada por cerca de sete milhões de habitantes, voltamos a levantar algumas dúvidas: dessas pessoas, quantas têm smartphones compatíveis? Das pessoas que a instalem, quantas terão a aplicação ativa fora do contexto laboral (ou académico/escolar)? Vamos, além da obrigatoriedade de ter a aplicação instalada, obrigar a ter o Bluetooth ligado e (aparentemente necessário para a aplicação funcionar no caso de alguns telemóveis com sistema Android), obrigar também a ter o GPS ligado?

São demasiadas questões para acreditarmos que este mecanismo é a resposta que procuramos e precisamos. As respostas que dermos a esta crise têm de ser proporcionais à sua necessidade, ser efetivas e eficazes, focadas nas pessoas e nas comunidades, e estarem completamente centradas e alicerçadas nos direitos humanos. Sem exceção.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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