Simplificar, capacitar e controlar ou como evitar os erros do costume

É que mais do que um desafio de recuperação económica face à pandemia da covid-19, a gestão e boa aplicação dos novos apoios reclama de todos nós um compromisso ético, a fim de evitar os erros do passado e melhor preparar o futuro.

Uma “pipa de massa”, “quase que uma orgia financeira”, uma “bazuca financeira”, um “pote cheio de milhões” ou mesmo um “obeso envelope financeiro”, sem precedentes, é aquele que Portugal irá receber da União Europeia relativo ao acordo firmado em Bruxelas para enfrentar as graves consequências que emergiram e que continuarão infelizmente a emergir para as economias da União, fruto da pandemia provocada pelo coronavírus.

Independentemente dos epítetos, mais ou menos pomposos, que possamos avançar para ilustrar esta poderosa ajuda financeira aos Estados Europeus fustigados pela crise sanitária decorrente da covid-19, a verdade é que todos estamos de acordo quanto ao essencial neste novo e decisivo capítulo da nossa história: é preciso, desta vez, aplicar bem e de forma regular os dinheiros que aí vêm, sem desperdícios, e garantindo que os mesmos acrescentam valor ao investimento e ao crescimento económicos, tornando-os mais sustentáveis e resilientes a eventos futuros, sobretudo, mas não só, a outros de contornos similares.

Muitos, resignados com a história, têm profetizado que tanto dinheiro trará consigo, qual karma que nos assola desde sempre, os males do costume. Falta de transparência, opacidade na distribuição das verbas previstas e, bem mais preocupante, desvio nas finalidades públicas que tais montantes pretendam satisfazer. No caso português, recorde-se, para que não restem dúvidas, que se prevê perto de um total de 58 mil milhões de euros, contemplando verbas do Portugal 2020, do Fundo de Recuperação e Resiliência e do quadro financeiro plurianual, com a particularidade de que a aplicação dos dinheiros se fará em diferentes períodos até 2029, o que forçará, nalgumas situações, a uma execução de projetos em prazos bem mais reduzidos do que era prática nos quadros comunitários de apoio anteriores.

Deste modo, e procurando então contrariar os mais resignados, a questão que se coloca insistentemente é se teremos nós aprendido com os erros cometidos no passado quanto à necessidade de fazermos agora uma boa e regular gestão e aplicação deste tipo de apoios.

Seremos nós, finalmente, capazes de aplicar bem o que agora nos irá, uma vez mais, ser destinado?

Creio que sim, certo de que tudo, uma vez mais, depende de nós e, sobretudo, da forma como formos capazes de resistir às tentações de outros tempos.

E como poderemos nós contribuir para tão exigente desiderato?

Comecemos por simplificar os processos de investimento, quer junto dos beneficiários dos apoios quer junto das entidades públicas que terão a difícil e importante tarefa de os publicitar, tramitar e, a final, decidir. Neste domínio, é imperioso que tenhamos um quadro legal simples, “amigo” do investidor (e sobretudo do interesse público), competitivo, transparente e de fácil exequibilidade.

Tal quadro legal deve prever e instituir, de forma clara, processos simplificados e ágeis, eliminando, por essa forma, qualquer espaço para (tentativas de) manobras de natureza corruptiva e amplificando, concomitantemente, a eficácia dos procedimentos de controlo instituídos, quer no seio das próprias entidades envolvidas quer os que possam vir a ser desenvolvidos pelas próprias entidades de controlo nacionais e europeias.

Um segundo aspeto é o que se prende com a necessidade de capacitar as entidades envolvidas nos procedimentos, dotando-as de recursos adequados e das necessárias competências para que possam, pela sua intervenção, otimizar, de facto, a eficiência nesses procedimentos e cumprir, com eficácia e de acordo com as prescrições do “bloco de legalidade”, a satisfação dos objetivos que subjazem a atribuição desses apoios.

Por fim, numa atmosfera de simplificação e de capacitação de todos os stakeholders, é vital controlar, externa e internamente, com regularidade, as entidades envolvidas nos procedimentos de concessão de apoio, o que inclui quem os decide e quem deles beneficia.

Neste particular, as entidades que beneficiem de dinheiros públicos por força dos apoios que lhes venham a ser concedidos, devem promover, o quanto antes, desejavelmente, uma ponderada e cuidada revisão dos seus instrumentos de controlo interno. É igualmente crítico que todas as entidades (concedentes e beneficiárias dos apoios) iniciem, o quanto antes, um exercício sério de mapeamento dos riscos mais significativos de acordo com o que perspetiva poder vir a ser o tipo e a natureza da sua intervenção no domínio dos novos apoios. Os planos de prevenção de riscos de corrupção e infrações conexas, enquanto instrumentos de largo espetro na gestão e controlo de riscos, podem, com beneficio para a sua eficácia, ser desde já reavaliados (ou pelo menos iniciado o seu processo) e, se pertinente, reajustados, na exata medida dos novos riscos associados às tarefas de execução dos instrumentos de apoio a desenvolver. Neste exigente processo, que se deseja iterativo, os departamentos de auditoria interna ou de controlo interno das diversas entidades assumirão, em articulação permanente com a gestão, um papel central nestes novos desafios.

Como se antecipa, são múltiplos os desafios que se divisam no horizonte, exigindo de todos uma assunção plena de responsabilidades e a preparação, o quanto antes, do competente trabalho de casa.

É que mais do que um desafio de recuperação económica face à pandemia da covid-19, a gestão e boa aplicação dos novos apoios reclama de todos nós um compromisso ético, a fim de evitar os erros do passado e melhor preparar o futuro, pois, como sabiamente refere Tolentino de Mendonça, se é verdade que “…não nos podemos atirar de pináculos para que Deus nos segure…”, temos “…de integrar saudavelmente os nossos limites e fazer a nossa parte”.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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