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Líbano: “a explosão deixou os mais vulneráveis ainda mais vulneráveis”

©Aline Deschamps
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No Líbano, duas trabalhadoras domésticas perdem a vida semanalmente um número estranhamente elevado, tendo em conta que se trata de uma comunidade de 250 mil  mulheres no país. A maioria morre devido a quedas de grandes alturas que são, em muitos casos, classificadas como suicídio. Coincidência? O jornal Al Jazeera levanta o véu, afirmando que muitas "caem de grandes alturas, de edifícios onde trabalham, em tentativas de fuga que são classificadas de suicídio". Aline Deschamps conhece a realidade destas mulheres e sabe que "algumas são vítimas de tráfico humano". A pandemia que afecta também o Líbano e a grande explosão que arrasou parte da capital adicionam camadas sobre um problema que era, já de si, muito complexo, refere a fotógrafa franco-tailandesa, que dedicou vários meses ao registo das imagens que apresenta, agora, ao P3.

A primeira vez que Aline visitou o Líbano, enquanto turista, foi em Maio de 2019. "Impressionou-me ver o espaço exíguo em que algumas trabalhadoras dormiam, no interior dos apartamentos. Acho que nem podemos chamar àquilo quartos. Simplesmente, não é uma situação decente." Nem todas as mulheres que trabalham nos lares libaneses são queridas dos seus patrões. E algumas das pessoas que conheceu ao longo do projecto deram-lhe a conhecer uma realidade que a chocou.

Quase todas as trabalhadoras domésticas que cumprem funções nos lares libaneses são de origem estrangeira e algumas encontram-se em situação de ilegalidade no país. A fotógrafa esteve em contacto com mulheres da Etiópia, das Filipinas e da Serra Leoa, mas optou por documentar a realidade daquelas que enfrentam maiores dificuldades e desafios, as serra-leonesas. 

As trabalhadoras domésticas que não conseguiram manter o emprego em tempos de pandemia, e que estavam sujeitas ao sistema Kafala – sistema que as obriga a ter um intermediário no país, que fica responsável pelo seu visto de permanência —, "não têm acesso ao privilégio de se poderem isolar", refere a fotógrafa. "Não têm transporte privado, por isso usam transportes públicos. E quase nenhuma tem acesso a àgua limpa, luvas ou máscaras, qualquer material recomendado para prevenir o contágio da covid-19." As mulheres que ficaram sem emprego "acabaram largadas nas ruas, sem direito ao seu voo de regresso, porque os empregadores deixaram de poder pagar-lhes". E algumas das mulheres que, sim, conseguiram manter os seus empregos, são mantidas em cativeiro pelos empregadores, que as impedem de circular livremente. 

Para as mulheres que hoje são sem-abrigo existe, hoje, algum apoio  apoio que se extinguiu aquando do surgimento da pandemia. Nesse conturbado período, as mesquitas e as igrejas que distribuíam refeições foram forçadas ao encerramento e as organizações não-governamentais que providenciavam um tecto tiveram de suspender os seus programas devido à sobrelotação dos abrigos. A situação conheceu melhoria na sequência da resposta à covid-19. Mas antes, "o medo era omnipresente, sobretudo por não haver acesso a cuidados médicos." Uma trabalhadora doméstica disse a Aline, em Março: "Claro que temos medo do vírus. Na Serra Leoa já tivemos a nossa experiência: o coronavírus é irmão do Ébola", uma epidemia que matou milhares de pessoas entre 2014 e 2015 .Para serem testadas à covid-19, estas mulheres têm de mostrar um documento de identificação às autoridades e muitas não estão na sua posse. "Normalmente é confiscado por quem as emprega. Por isso, a maioria evita ser testada, por medo de prisão."

Durante o desenvolvimento do projecto, Aline cruzou-se com a trabalhadora doméstica Lucy, serra-leonesa e mãe de duas crianças e activista nesta causa da protecção desta classe profissional. "Ela era professora até se cruzar com uma agência de recrutamento que a aconselhou a emigrar para o Líbano. Prometeram-lhe que conseguiria dobrar o salário e, dessa forma, ajudar a família. Era uma proposta que não podia recusar, apesar de não ter dinheiro para pagar à agência." Lucy contraiu um empréstimo de quase dois mil euros para poder viajar. À chegada, no entanto, a realidade que encontrou foi tudo menos a que esperava. Lucy foi trabalhar para a casa de uma família de classe média, em Beirute, e passou a residir com os patrões, como é habitual neste tipo de trabalho. Foi o início de um "pesadelo" que durou sete meses. "Vir para o Líbano foi o pior erro da minha vida", disse Lucy à fotógrafa. "Não me tratavam como um ser humano. A minha patroa disse-me 'tu és preta, não és humana, és um animal'. Nove meses após a chegada ao Líbano, Lucy ainda não tinha recebido qualquer pagamento. Quando se queixou à agência que a recrutou "foi trancada numa casa-de-banho durante dias e espancada". Fugiu e tornou-se sem-abrigo. 

Com a grande explosão, em Beirute, 300 mil libaneses perderam as suas casas. "As trabalhadoras temem que os seus pedidos de repatriamento sejam subvalorizados no meio de toda esta crise. Temem que a sua história e a sua luta pelo regresso a casa sejam esquecidos, uma vez mais." A fotógrafa recusa-se a aceitar a desumanização destas mulheres e, com o projecto, pretende dar a conhecer as suas histórias. "Não posso aceitar a desumanização das pessoas simplesmente porque trabalham para ti." Os direitos destas mulheres falam-lhe directamente ao coração. "Eu cresci na Tailândia e, em casa, tínhamos duas trabalhadoras que eram como membros da família. Tinham cada uma o seu quarto, a sua vida privada, e hoje, vinte anos depois, ainda mantemos contacto sempre que vou a Banguecoque." 

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