Covid-19 e DGS deixam desporto jovem em agonia

As normas veiculadas pelas autoridades de saúde estipulam condicionamentos na retoma das modalidades desportivas, que paralisam as competições para 440 mil atletas. Clubes e federações em risco.

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A covid-19 “estrangulou” o turismo, a restauração, o comércio e a indústria. Em geral, asfixiou a economia nacional. E se todos sofrem com a pandemia, pessoal ou profissionalmente, o desporto não é diferente. Mais de 400 mil jovens atletas federados estão em stand-by. Porque a covid-19 teima em não largar o globo e porque as normas emanadas pela Direcção-Geral da Saúde (DGS) estabelecem, consequentemente, que não haverá, para já, jovens atletas em acção (a não ser os que tenham competições internacionais já previstas).

Os últimos dados do Pordata esclarecem que, em 2018, havia em Portugal quase 440.000 jovens a praticarem desporto federado em Portugal. Este lote de atletas, contabilizados até ao escalão júnior, terá de ficar a ver os mais velhos competirem – os seniores, sim, estão autorizados pela DGS a regressarem aos campos, pavilhões ou piscinas, ainda que sob condições específicas.

Os mais conhecedores da realidade desportiva em Portugal dirão que a falta das mensalidades destes jovens atletas será fatal para muitos clubes. E esta premissa não está longe da realidade. Na verdade, pode ser, inclusivamente, um pouco eufemística.

Vicente Araújo, presidente da Federação Portuguesa de Voleibol (FPV), explica ao PÚBLICO que, mais do que clubes, podem mesmo estar em causa as federações.

“Eu não quero colocar sequer esse cenário [de muitos atletas a desistirem do desporto], porque seria catastrófico. São milhares de jovens que ficariam sem desporto. Isto cabe na cabeça de alguém? No voleibol, a formação corresponde a cerca de 90% dos atletas e os clubes estão preocupados, porque a formação é a base que têm. Vão abrir só com seniores? Não. Nesse cenário [de não retoma cabal das provas de formação], vão fechar clubes e, se calhar, até vão fechar federações”, analisou.

Mas o dirigente de voleibol crê que a norma da DGS será revista. “Não concebo e não acredito que isto seja a sério. E que seja sério. É inaceitável e absurdo que a DGS venha ultrapassar a norma do Conselho de Ministros, que tinha permitido a retoma das modalidades. Não me parece que a função da DGS seja decidir se há retoma, mas sim regular as condições em que ela seria feita. E acredito que haverá bom senso para que o desporto de formação se reinicie”, apontou, acrescentando que desde início a FPV está a trabalhar com a secretaria de estado do desporto para que seja encontrada uma solução de retoma faseada - e a FPV apresentou, de resto, uma proposta para essa retoma, algo que o presidente reforçou durante a conversa com o PÚBLICO.

Alto risco para o polo aquático

O voleibol é uma das modalidades catalogadas pela DGS como desporto de “médio risco”, numa escala de três patamares – e que teve em conta, entre outros factores, o contacto cara a cara entre atletas.

Questionado sobre a especificidade do voleibol – desporto com menos contacto entre jogadores do que outros como basquetebol ou andebol –, Vicente Araújo lembra que “o voleibol não tem contacto entre atletas”, nem mesmo nas acções específicas de bloco. “Já ouvi dizer que, no bloco, os jogadores estão cara a cara, mas quem é que salta tanto ao ponto de fazer o bloco com a cara claramente acima da rede?”, questionou.

O presidente da FPV criticou a decisão da DGS, lembrando que “as escolas vão começar dia 15”, e aponta, mais do que à proibição do desporto, à necessária consciencialização dos atletas de que as medidas sanitárias do quotidiano são essenciais.

No caso do polo aquático o cenário é ainda mais limitativo. Incluída no “alto risco”, a modalidade só poderá ser retomada com testagem de todos os agentes envolvidos nos jogos oficiais até 48 horas antes do momento competitivo. No caso dos escalões de formação, nem isso.

António Silva, presidente da Federação Portuguesa de Natação (FPN), diz ao PÚBLICO não concordar com a decisão de colocar o polo aquático no patamar do “alto risco”, justificando não existirem fundamentos para esta categorização.

“No polo aquático não há contacto face a face, que nem sequer é permitido regulamentarmente. Mas durante o jogo pode acontecer, claro que sim. O risco nunca deixa de existir. Mas não é diferente do andebol ou do basquetebol (…) e mesmo no estrangeiro o polo aquático é visto como baixo ou médio risco”, argumenta.

Sobre os efeitos desta medida, o dirigente da FPN diz não temer que haja clubes a fechar – avança que esse cenário é já uma realidade. “Temer? Eu não temo, porque isso já está a acontecer. A partir do momento em que as condições de treino são tão limitadas e as competições jovens não sejam possíveis, isso afecta a sustentabilidade dos clubes, que dependem dos pagamentos das mensalidades da formação”.

“O desporto não conta para o ‘totobola’ das políticas sociais”, acrescentou, acusando o Governo de não querer saber do papel do desporto na coesão social.

Râguebi sem contacto?

No râguebi, a aceitação das normas da DGS é maior – ainda que não seja total. A classificação de “alto risco” não é discutida por Carlos Amado da Silva, presidente da FPR, que lamenta, porém, a desigualdade relativamente a outros desportos. E propõe até algumas alterações, mesmo nas leis do jogo.

“Poderia haver uma alteração momentânea das regras, como por exemplo suprimir as formações ordenadas”, apontou à Lusa, como exemplo de algo que poderia ajudar a não estrangular uma modalidade cuja competição jovem está em risco.

Estas palavras surgiram horas antes de o Sporting ter anunciado a abertura das inscrições para os escalões de formação. Os “leões” consideram que “a orientação emitida pela DGS não proíbe os treinos dentro da mesma equipa” e que “os planos de treino já estavam elaborados pelos técnicos e prevêem todas as condições para um treino seguro”.

João Telhada, coordenador da formação do râguebi “leonino”, avançou ainda à Lusa que, para o escalão sub-14, “têm sido feitos alguns contactos com outros clubes no sentido de tentar montar uma competição informal, numa variante sem contacto, que cumpra as normas da DGS”.

Toda esta criatividade na procura de soluções que viabilizem a retoma do râguebi juvenil esbarrará, ainda assim, no presumível parco interesse dos pais em inscrever ou manter os filhos numa modalidade de “alto risco”. E passará por aí um dos grandes desafios das federações e, sobretudo, dos clubes.

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