António Simão é de novo Hanta, agora menos heavy metal

Passados 23 anos, o actor dos Artistas Unidos regressa ao texto de Bohumil Hrabal. Até domingo, Uma Solidão Demasiado Ruidosa estará no Festival de Almada. Segue-se uma digressão por Caldas da Rainha, Setúbal, Lisboa e Cacém.

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JORGE GONÇALVES

Em 1976, quando o escritor checo Bohumil Hrabal publicou Uma Solidão Demasiado Ruidosa, a censura imposta pelos governos do Bloco de Leste, sob a alçada repressiva da União Soviética, obrigava a que textos mais “perigosos” encontrassem os seus leitores através da publicação em samizdat – a distribuição e a replicação de cópias clandestinas, postas a circular debaixo dos narizes das autoridades. Ora a história que Hrabal verteu então para o papel dava conta, pouco acidentalmente, de um velho chamado Hanta, que prensa e destrói livros numa qualquer cave bafienta em Praga.

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Em 1976, quando o escritor checo Bohumil Hrabal publicou Uma Solidão Demasiado Ruidosa, a censura imposta pelos governos do Bloco de Leste, sob a alçada repressiva da União Soviética, obrigava a que textos mais “perigosos” encontrassem os seus leitores através da publicação em samizdat – a distribuição e a replicação de cópias clandestinas, postas a circular debaixo dos narizes das autoridades. Ora a história que Hrabal verteu então para o papel dava conta, pouco acidentalmente, de um velho chamado Hanta, que prensa e destrói livros numa qualquer cave bafienta em Praga.

Há 35 anos que Hanta vive rodeado de toneladas de livros, há 35 anos que se suja de letras, conforme ele próprio nos informa logo no início desta adaptação teatral do texto de Hrabal encenada e interpretada por António Simão. Já nem sabe que ideias lhe pertencem e que ideias colheu dos livros. E há 35 anos que Hanta bebe cerveja enquanto trabalha. “Não é para me embebedar – odeio bêbedos –, é para ajudar o pensamento, para entrar melhor, penetrar o coração dos textos”, diz a personagem de Hrabal. Mas se a destruição é o fim exigido àqueles volumes, transformados em cubos de papel, o velho vai-a fintando e guardando os livros em si, ao mesmo tempo que é a única pessoa no mundo a saber “que ali, no meio de nojentas cartolinas manchadas de sangue, está um Hölderlin”, e que “dentro do pacote de sacos de cimento está o Nietzsche em alemão”.

António Simão levou ao palco pela primeira vez este “monólogo barroco” que nos transporta “ao ambiente amarelecido e cru da Checoslováquia de Kafka” em 1997. “Na altura deu-me imenso jeito porque tinha acabado de sair da escola, estava cheio de conhecimentos, de treinos e de práticas de actor”, recorda. “Quando este texto me apareceu, pensei que ia aproveitar para tirar as teimas – se corresse bem, continuava; se não, ia para pedreiro.” Uma Solidão Demasiado Ruidosa estreou-se então no Centro Cultural de Belém, e o seu sucesso garantiu que a carreira de Simão continuaria a fazer-se enquanto actor dos Artistas Unidos, companhia fundada por Jorge Silva Melo (e com quem já tinha feito António, Um Rapaz de Lisboa e O Fim ou Tende Misericórdia de Nós).

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cortesia artistas unidos

Encantara-se com o texto por ver nele, como apontou Milan Kundera, “uma das incarnações mais autênticas da Praga mágica, o incrível casamento do amor plebeu e da imaginação barroca”. E, acrescenta Simão, de “uma tristeza, uma pobreza e uma miséria enormes, mas em que se encontra beleza”. O actor e encenador compara esse ambiente ao do cinema de Fellini ou de Kusturica, relacionando-o com uma geografia europeia “que tem uma história profunda com comunistas, fascistas, nazis, impérios austro-húngaros, igrejas e cerveja”. E isto porque Hanta bebe muita cerveja enquanto nos fala do seu ofício, recorda visões de Lao-Tsé e de Jesus, e viaja por bailes e amores idos.

Menos corpo, mais conversa

Passados 23 anos sobre a estreia original, António Simão não é o mesmo actor. “Quando concebi o espectáculo tinha 24 anos e, atendendo também às tendências da altura, era um espectáculo com uma fisicalidade muito mais presente”, resgata da memória. “Era quase dança. Tinha uma coreografia, do princípio ao fim o corpo estava sempre em desfasamento – nunca ilustrando – com o texto. Na altura era um concerto de heavy metal ou hard rock.” Agora não. No espectáculo que levará em digressão ao Festival de Almada (esta sexta-feira, sábado e domingo, Incrível Almadense), ao Teatro da Rainha (dias 16 a 18, Caldas da Rainha), ao Festival de Teatro de Setúbal (23 de Agosto), ao Teatro da Politécnica (27 de Agosto e a 19 de Setembro, Lisboa) e ao Auditório António da Silva, no Cacém (3 de Outubro), António Simão pouco se mexe da secretária de onde não pára de tirar cervejas, colocando toda a peça “no lado do discurso, da narração, da conversa, e menos na performance do actor”.

Aquilo que os anos trouxeram ao seu novo olhar sobre o texto é, confessadamente, uma atenção mais profunda às palavras, que a maior imobilidade em palco também evidencia. “Para um actor, é muito engraçado andar com um texto tanto tempo, ver o que vai acontecer às palavras ou o que vou pensando por trás”, sublinha. “Porque o texto está sempre vivo, nunca é bem a mesma coisa. Mesmo o ritmo e a música das palavras vão sendo alterados. É a mesma partitura, é a mesma música, mas já é tocada de uma outra maneira.” E a actualidade dessas palavras, numa Europa que parece reviver alguns dos seus traumas associados a momentos de extremismo político, está garantida. Na cave de Hanta, a memória e os livros têm por destino uma prensa hidráulica e a mais cruel obsolescência. E os livros – tanto no texto de Hrabal quanto nalguns exemplos claros dos nossos dias – são alvo de denúncias e de vários graus de censura.

E depois há ainda a desumanização e o afastamento de Hanta, apartado da sua prensa pela juventude trazida pela brigada socialista do trabalho. Meros tarefeiros, indiferentes aos livros que lançam para o esquecimento e que, pobres coitados, não bebem cerveja, mas sim garrafas de leite.