Há uma brigada de voluntários a “cozinhar” cantinas de urgência

Não vivem de fundos públicos nem são instituições de solidariedade, mas distribuem refeições a centenas de pessoas. Em Lisboa e no Barreiro, cinco colectivos acreditam que dependeremos cada vez mais de iniciativas autónomas para enfrentar os novos tempos.

Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
,Tarola
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
comida de rua
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Carro
Fotogaleria
Daniel Rocha
comida de rua
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha
Fotogaleria
Daniel Rocha

12h55. As pessoas começam a vir à porta para perguntar quando começa. Acima do balcão metalizado, duas inscrições: “Isto não é um bar”; “Isto não é um restaurante”. Nunca foi. A associação RDA – Recreativa dos Anjos é um projecto político, autónomo e comunitário que, em tempos de covid-19, decidiu concentrar as actividades no essencial: uma cantina solidária que distribui refeições quentes e gratuitas a quem precisa.

No primeiro dia, em Março, apareceu pouca gente. Foi preciso descer a Avenida Almirante Reis, em Lisboa, a passar a comida e a palavra. Agora, oferecem uma média de 150 refeições por dia, sem folgas, e a própria Junta de Freguesia de Arroios encaminha pedidos de apoio para a associação. A quem chega não fazem perguntas, não há requisitos a preencher. Por isso, também não há um padrão na fila que se avoluma ao bater da uma da tarde. São sem-abrigo, novos desempregados, trabalhadores à jorna que perderam os rendimentos de um dia para o outro, imigrantes, portugueses, novos e velhos. A clientela habitual – “estudantes, jovens, hipsters”, no resumo de Luhuna Carvalho, membro da assembleia do RDA – que vinha aos concertos, conversas, filmes e noites de festa da associação em tempos normais – está fechada em casa. Um novo bairro emergiu.

Até às 15h, seis voluntários continuarão a oferecer pratos de massa, carne e legumes. Há também iogurte, uma peça de fruta e água. No entanto, este não é um acto de caridade, mas antes um passo no sentido da autonomia e da entreajuda. Como lembra Luhuna, vários filósofos acreditam que o momento que vivemos é um “ensaio geral” das crises que se seguirão, ligadas às alterações climáticas, e que, nelas, “a acção dos estados oscilará entre a incapacidade de cuidar de todos e a intensificação dos seus traços mais autoritários”. Mais do que dar comida, a cantina é, por isso, uma forma de “colocar em prática processos colectivos de autonomia e organização que permitirão enfrentar os tempos que se aproximam”, acredita Luhuna Carvalho.

Foto
Daniel Rocha

O donativo espontâneo

Daniel, 36 anos, equilibra a comida nas mãos. Chegou a Lisboa no dia 20 de Fevereiro, vindo de Londres, onde foi cozinheiro e motorista. Alugou um quarto, ia recomeçar a vida, até que ficou “tudo nebuloso”. “Ainda tenho lugar para dormir mas o dinheiro está a acabar”, conta. Por isso veio pedir comida. “Nunca tinha chegado a este ponto, mas também não me envergonho. Prefiro estar aqui do que roubar.” Apesar de tudo, está tranquilo. Nas filas para a comida, tem conhecido “muita gente que está a passar pelo mesmo” e isso ajuda a aceitar o novo normal, o mesmo que calhou a Josefa, 51 anos, que há dias passou por acaso nesta rua e descobriu a cantina solidária. Empresária no negócio do transporte individual (TVDE), quando “a situação apertou”, viu-se obrigada a dispensar os trabalhadores e a mudar-se do apartamento arrendado para um quarto que partilha com o filho. “Ele ganha pouco, é mecânico de elevadores, mas dá para o quarto. E eu levo a comida. Uma refeição daqui, outra ali de cima, do Exército, muito boa também.”

Provavelmente, Daniel e Josefa nunca conhecerão quem lhes paga as refeições dos dias da pandemia. Tal como acontece com outros colectivos da zona, o sistema de cantina solidária é sustentado por donativos, até porque, com a aplicação do estado de emergência, os bares que suportavam cada um dos espaços foram suprimidos.

 “Sempre consideramos a cantina uma das coisas principais. O RDA começou nos anos da austeridade [em 2010] e essas refeições [que custavam 2,50 euros] surgiram como economicamente viáveis para muita gente”, recorda Luhuna. Com o confinamento, pensaram que aconteceria o mesmo. “Fizemos isso durante uma semana, mas não vinha ninguém”; decidiram oferecer. “Tínhamos dinheiro para 30 ou 40 refeições por dia durante uma semana. Depois, logo se via.” E o que se viu foi que “começaram a chover donativos, ao mesmo tempo que aumentava o número de pessoas” à procura de apoio. Na primeira semana oscilaram entre 30 e 40 por dia, no final de Abril, chegaram a aparecer 200.

Na mesma zona da cidade, colectivos vizinhos protagonizam situações semelhantes através de uma rede de voluntários, alguns desempregados, outros em lay-off e outros, ainda, que conseguem dar tempo por terem horários flexíveis. Por vontade de um grupo de amigos, o Provisório criou a Cantina Solidária Temporária, uma espécie de sistema pop-up para estes dias de emergência e calamidade, que serve uma média de 85 refeições diárias; a Disgraça oferece refeições quatro dias por semana; e no Barreiro, a Cooperativa Mula distribui cerca de 80 refeições e 90 cabazes por dia (tanto à porta, como em entregas ao domicílio). Para lá do plano alimentar, está a Brigada de Bairro, uma rede informal – composta por perto de 100 voluntários – que liga todos estes projectos através de um trabalho de comunicação com a comunidade e de sinalização de necessidades no terreno. “Dizemos onde podem ter refeições, tentamos perceber se precisam de comida em casa, mas de outras coisas também, como ir à farmácia, passear animais, levar o lixo ou só conversar. Vemos o que podemos fazer ou para onde as podemos encaminhar. Também já encaminhámos um caso para a Junta”, explica Ana Reis.

Foto
Daniel Rocha

Não há planos estanques

A melhor forma de estar em ressonância com o momento, acreditam os colectivos, é estar na rua e criar respostas em função do que acontece. “Temos uma relação muito próxima com as pessoas. Começámos a ver domésticas, ‘mexilhoeiros’ [apanhadores de mexilhão], arrumadores de carros a ficarem sem dinheiro de um dia para o outro. Foram os primeiros. Decidimos criar uma cantina de urgência, em que cada um dava o que pudesse. Mas rapidamente começámos a ver que as pessoas não davam nada, porque não tinham”, conta Mário Negrão, da Cooperativa Mula. Não foi por isso que pararam, e, mais uma vez, começaram a surgir donativos, ainda que nesta fase comecem a escassear. “Já gastámos mais do que o que recebemos”, afirma o activista. Em paralelo à confecção de refeições, às famílias numerosas a Mula decidiu oferecer cabazes, e está também a cultivar um terreno baldio próximo da cooperativa, porque é preciso “ter um backup”.

Mas até quando se aguentarão de pé estas cantinas? “Enquanto houver dinheiro e necessidade, vai continuar”, assume o RDA. Já o colectivo do Barreiro revela-se mais pessimista. “A Cantina Solidária da Mula poderá ter de em breve deixar de ajudar tantas pessoas. A Cooperativa Mula não é uma IPSS, não recebe apoios camarários ou estatais, para além de coisas pontuais e que agradecemos. Mas na verdade, temos de ser francos, temos feito as vezes de várias dessas responsabilidades”, comunicou a organização a 29 de Abril.

Além de apelarem a doações, os colectivos planeiam desenhar uma estratégia que os torne independentes da grande distribuição para a aquisição de comida, de forma a chegarem aos produtores sem ter de passar pelas margens dos intermediários, naquilo que é mais uma vez uma acção política. “O papel dos supermercados está a ser muito reduzido e temos a intenção de confrontá-los”, argumenta Mário Negrão.

Para o colectivo do Barreiro, a consciência é de que, ainda assim, fazem “muito pouco para as necessidades que existem”. No entanto, acreditam que com a partilha de métodos possíveis de solidariedade poderão “inspirar à criação de outras redes como esta”. O propósito deste tipo de iniciativas, corrobora Luhuna Carvalho, “é passar de algo meramente assistencialista para algo politicamente mais forte. As pessoas ajudarem-se umas às outras e organizarem-se não é uma ideia utópica; acontece. Nós só estamos a pegar em coisas que já existem, a desenterrá-las, a limpar-lhes o pó e a metê-las a funcionar”. 

Sugerir correcção