O que vamos construir?

É ainda demasiado cedo para avaliar resultados, mas com certeza não será demasiado cedo para começar a prevê-los.

Os edifícios são mais do que meros dispositivos de organização de espaço. São veículos de investimento, um dos pilares centrais do nosso sistema económico e também uma potencial fonte da sua instabilidade, como refere o arquiteto Reinier de Graaf no livro Four Walls and a Roof.

O sector da construção, particularmente em Portugal, tem um peso brutal na economia real. Se o somarmos ao sector do imobiliário, corresponde a 17,4% do PIB, a cerca de 50% do investimento e a mais de 350.000 postos de trabalho, ou seja, mais 7,5% do tecido laboral português.

Informar e prever possíveis cenários relativamente a um sector simultaneamente tão importante e tão vulnerável será fulcral para o futuro do país. No cumprimento desta missão a arquitetura assume o preeminente papel da antecipação: antes de haver obras, há projetos. Os arquitetos são os primeiros a sentir as flutuações da encomenda, quanto à quantidade, mas também quanto às tipologias e aos programas dos edifícios que se vão construir.

A crise (que não é só económica) que esta pandemia nos trará vai mudar a nossa arquitetura e o nosso parque edificado. Não vai, no entanto, revolucioná-los. Depois do surgimento da Bauhaus – e entretanto já passaram 100 anos – a arquitetura moderna não conheceu mais nenhum momento de mutação abrupta. Os períodos pós-crise traduziram-se numa espécie de primavera criativa moderada, momentos de evolução mais do que de revolução. Foi assim depois da Segunda Guerra Mundial, com a necessidade de reconstruir uma Europa em ruínas. Foi assim depois do Relatório Brundtland e dos demais tratados que alertaram para a emergência ambiental, que a partir do início da década de noventa obrigaram a arquitetura a adotar inquestionavelmente a palavra “sustentável”. Será assim depois da covid-19.

É ainda demasiado cedo para avaliar resultados, mas com certeza não será demasiado cedo para começar a prevê-los. Deixo alguns prognósticos, necessariamente falíveis, do que deverá acontecer nos próximos meses.

1. Os preços da construção e do imobiliário vão baixar, mas não da mesma forma em todo o país. Cidades como Porto e Lisboa sofrerão uma redução mais significativa e mais repentina, consequência da redução do poder de compra dos portugueses e, cumulativamente, da diminuição da procura associada à expectável quebra do turismo internacional. Por outro lado, cidades pouco dependentes do turismo terão uma queda mais ligeira, devido essencialmente à redução do poder de compra, sendo que nestes casos a procura não sofrerá alterações significativas.

2. Um dos maiores problemas do sector da construção irá desaparecer: a falta de mão-de-obra, da qual o presidente da AICCOPN já se queixava há cerca de um ano neste mesmo jornal. O aumento do desemprego noutras áreas aumentará a mão-de-obra disponível para a construção. A indústria deverá aproveitar esse momento para se reinventar, criando condições laborais que permitam qualificar e fixar os trabalhadores, não os perdendo para outros sectores, ou para o mesmo sector noutros países, como a França ou a Suíça.

3. A encomenda ligada ao turismo, o “Santo Graal” para muitos arquitetos, construtores e agentes imobiliários durante os últimos cinco anos, vai baixar. Por outro lado, acredito que surgirão novos projetos visando a reconversão de edifícios turísticos em imóveis com outras funções — como habitação, residências para estudantes e lares de idosos — que continuarão a ter uma procura elevada, particularmente nos centros urbanos.

4. A flexibilidade ganhará uma nova relevância nos nossos edifícios e na forma como estes são projetados. A pandemia mostrou-nos como um pavilhão gimnodesportivo ou uma sala de espetáculos tem de ser suficientemente flexível para se transformar num hospital de campanha, ou como uma casa tem de ser suficientemente flexível para se transformar num escritório improvisado, necessidade comprovada por cerca de dois milhões de portugueses que por estes dias passaram pela experiência do teletrabalho. Esta condição poderá estar na origem da criação de novas soluções arquitetónicas e evoluções tipológicas.

5. A Lei de Bases da Habitação, criada em 2019, terá mesmo de sair do papel. O Estado, em particular através dos municípios, terá de pôr em prática os desígnios da Lei, promovendo a construção, a reabilitação e o arrendamento de habitações a custos controlados. O controlo da crise social que sempre sucede a uma crise económica dependerá, em grande medida, do grau de concretização destes princípios. O acesso de todos a uma habitação de “dimensão adequada” e com “condições de higiene e conforto” é muito mais do que um slogan político. É um direito previsto na Constituição da República Portuguesa. E nos momentos de viragem, como o que agora atravessamos, importa, mais do que nunca, recordar e respeitar estes princípios fundamentais, para que nos viremos para a direção certa.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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