O inventário do medo

O problema é que o MEDO veio para ficar. E se já estava aí por via do terror globalizado, aprofundar-se-á agora por via do inimigo invisível.

O medo é uma aprendizagem, quer dizer, um estado psicológico que nos habituamos a dominar, a ir dominando, a contornar, a enfrentar. Sempre numa medida que nos permita regressar à acção. Vai sendo diferente a relação com ele ao longo do tempo, monstruoso na infância, inimigo nas idades da afirmação, forma de quase tudo ler na idade mais avançada.

O modo como surge é diverso, primeiro interior, secreto, íntimo, com manifestações nocturnas conhecidas, mais tarde vindo de fora para dentro, como uma ideologia, tanto por via hierárquica como por via social, global até. Dentro, se cresce desmesuradamente leva à loucura, deixa de ser dominado, domina. Fora é um instrumento de poder, a paralisia uma presença do poder do lado de quem o pode escrutinar, pôr em causa. O medo pode gerir-se, e nos combates da vida é um inimigo poderoso. E pode converter-se num instrumento de domínio das formas de controlo social, do hipercontrolo, pode ser gerido a partir dos aparelhos da sua propagação.

Começa no susto. Alguém nos apanha desprevenidos e faz HUUUU! Não que tire o sono, outro grau do susto — sustómetro para quê, as batidas cardíacas medem bem o grau. Um urso que sai do armário num repente pode fazer tremelicar.

Matamouros tremelica como poucos, é técnico desse gag. Um tremor de terra no corpo. O medo é cósmico, a figura é global nos tempos em que a globalização cruzava continentes com grandes passadas sobre os oceanos. Como no Kabuki, na Dell’arte os gestos de terror estão no chão da escrita, repetem-se, treino de ofício, nenhum improviso, eficácia e rigor a mesma pulsão enérgica de tempo e desenho gestual, acção. Arlequim é o medo instintivo, isso permite-lhe escapar da matraca do dono. Do superior. Do senhor. Do acima, do logo acima Brighela.  

Em criança — “ó que má creança tem”, diz Vicente, falando de educação — noite escura, um mexer de cortinas ou a forma de um casaco/gente no cabide, fazem medo. Tive recorrente esta visão pelos oito, nove anos, confinamento total sob o lençol.

Ia morrendo de medo disse o mais corajoso depois de enfrentar a mamba negra em campo aberto. Foi assim que o que foi visto se instalou na memória, marco do medo. No mar também se cultivava esse confronto, no Bilene e no Xai-Xai dentro da cerca de rochas, no Chongoene — o anequim tinha os seus túneis submarinos e víamos mais tubarões do que os que existiam de facto. No nosso medo o stock não esgotava — a Pescanova era longe no tempo.

Diz-se terror, palavra que trás uma dimensão global — sistémica — e mortandades como poucas. Descabeçar pessoas directamente para o telemóvel “educa” para a impotente passividade elaborada de sofá — a pedagogia do terror conta com o medo convertido em horror íntimo no consumidor compulsivo de imagens. Sem comunicação directa os desacabeçamentos seriam menos? Essa mortandade é para o directo espalhar na rede, paralisar de medo o “infiel”. O grau de barbárie é radicalmente selvático e espectacular, semeia um medo generalizado, oposto do medo íntimo da infância, de cada um em processo de dominação interior.

Na tragédia, Aristóteles fala de experimentar “o terror e a piedade” como purga social em regime presencial — o teatro grego era cívico por via terapêutica e terapia por via cívica. A guilhotina tinha outro pedegree e esse objectivo de morte instantânea, sem sofrimento, diziam médicos, melhorava o enforcamento, morte fodida. Da lâmina direita à oblíqua o progresso avançou. Nas Américas é a cadeira eléctrica, na Arábia Saudita continuam a usar a cimitarra, agora poupam os pescoços dos menores, um grande avanço.

Por cá a pancada doméstica urde medos em rede. E as histórias multiplicam-se. São da ordem da falta de saúde cultural, mental. A propriedade é um problema cultural. Não é fado. A monogamia cultua a relação exclusiva. Nos desertos metem os adúlteros em areia até ao pescoço e apedrejam, morte por lapidação.

O medo é um negócio. Sob forma pânica é uma indústria. Instaura a disponibilidade para o que vier que limite, que o expulse, o extermine — os especialistas em exterminar o medo, de mercenários de diverso tipo, uns de lábia e outros armados, às mais diversas formas do sermão doméstico, sabem que o medo além de pegar de estaca não tem vacina. É uma narrativa com paladar que se interioriza a contragosto, reconhecível, o masoquismo compraz-se na missa diária dos mortos contabilizados. A dimensão crítica — diversa do narcisimo arrogante, sociopata e imerso na massa — esgota-se. As narrativas estupidificantes ganham os proscénios mediáticos, os imbecis têm emprego constante na pantalha, uns de lá outros donos dela, quem chama gente é chamariz, share, star, estrela, rende e faz render. E o mais estapafúrdio, a mais espectacular, o mais imbecil, tem a primazia.

O criador que somos, suposto sujeito emancipado em si mesmo, vira criatura fabricada pelo seu próprio educado medo, dependentiza-se de formas malsãs de sentir e observar, pervertidas de ângulo — quem está de lado de lá da pantalha apanha a bolada e cala-se atordoado, do lado dela, máquina, os industriais do medo têm alta capacidade tecnocénica e sofisticados meios de fabricar o terror, sejam primeiros planos dos descabeçamentos ou as estranhas formas espctaculares, espéctricas, do não visível, muitas vezes exposto em ferida no rosto das vítimas.

Cala e consente. O sujeito é manipulado, a consciência de si fá-lo viver em si o senhor e o escravo — a impotência, e sua acumulação patológica, é a regra do hipnotisado de pavor alimentado. Porque a coisa repete-se e volta a repetir-se e a repetição é a forma de medrar e cultivar — mesmo cultuar — o medo. O medo tem altar. Como o dinheiro, é icónico, gera mitologia, os seus oficiantes são temidos.

Este vírus nosso de cada dia que nos envenena e que sem feder fede, não surge desse modo. É magnífico nas suas formas espaciais e científicas, pintura três mais que D a vagar no espaço em que nós, os que respiram, existimos. E o infinitamente minúsculo, maior que outros segundo as descodificações que lemos, é que é invisível, isto é, não é, já que as diversas formas de animação que o exibem, fê-lo transbordar de tamanho, desenhou-o em modo aumentado.

Estamos sempre a ver o mesmo filme. O resto é decorativo. Distracção a martelo para voltar ao monotema. Poucos tentam uma vida fora da pandemia como método de aceder a uma certa saúde pela distância. Por disciplina e autocontrolo. Sempre somos capazes de alguma autodeterminação. Está inscrita no código genético das constituições. E da nossa.

O que é facto é que o medo é fonte sem fim de negócio, ao contrário do petróleo não se esgota. A quantidade de produtos que aí andam para consumo imediato ao mesmo tempo que a fome cresce e o desemprego grassa, são sinal disso. E o dinheiro que na época da dívida e da rigidez orçamental era inalcançável corre agora abundantemente para o que é urgente. E necessário.

O problema é que o MEDO veio para ficar. E se já estava aí por via do terror globalizado, aprofundar-se-á agora por via do inimigo invisível. Do que nos trouxe até aqui, ao vírus, fruto do “avanço civilizacional”, quotidiano tecno-virtualizado, pouco não se falará - fala-se da origem do bicho num desrespeito pela vida selvagem, na realidade veio de alguma origem. É provável que depois desta esfera com lábios chupantes em tentáculos virais, que tem coroa, venha outro. E que nos habituemos a viver assim, confinados.

O que não se inverterá é a desmatação global, o aquecimento global, o desaparecimento das espécies animais e de outras culturas, como os índios da floresta amazónica, por todo o planeta. O estado apocalíptico do nosso quotidiano veio para ficar. Será? Só essa convicção nos pode levar ao seu contrário, a uma grande volta, científica, contra o Estado Integrado-Espectacular do Medo Globalizado.

De facto o espectro não tem vacina e é monstruoso nas consequências. Nem com rezas, nem com laboratórios e toda a indústria farmacêutica em concorrência cega atrás de matar o contágio, cede. Aqui chegámos! E mais uma vez o Lucro, como motor da economia, está aí em devir. E a miséria correspondente. Socializemos as fortunas e os lucros, tornemos comum é que é de todos, é hora de inverter os processos a que as conhecidas retomas conduzem.

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