E depois do mundo desmoronado?

A crise mais importante das nossas vidas exige um novo pensamento, um novo modelo económico e social, uma nova ordem internacional. Não temos nenhuma certeza sobre a porta de saída de um mundo desmoronado. Mas há algumas coisas que já sabemos.

Edgar Allan Poe, num dos seus contos, descreve um reino onde se propaga uma epidemia, a morte vermelha, o que leva o príncipe e a corte a isolarem-se por completo numa abadia e a cortarem as ligações com o mundo exterior, deixando este entregue a si próprio. Cinco ou seis meses depois, “quando a peste mais furiosamente grassava no exterior”, o príncipe resolve dar uma festa, um baile de máscaras para os seus amigos. Nessa assembleia de fantasmas aparece mascarada a morte vermelha, como “um ladrão na noite”, e faz o seu trabalho demolidor.

O génio do escritor americano ilustra bem uma das características de uma epidemia nova:há tudo menos certezas. Isto contrasta com o desfile de certezas que vemos hoje na luta contra a morte vermelha do nosso tempo. Neil Fergusson, um dos grandes epidemiologistas do Imperial College, disse: “Ninguém percebeu ainda totalmente este vírus. Ninguém sabe onde é a porta de saída.” Os sábios são sempre os mais humildes. Eles sabem o que não sabem.

É também interessante olhar para os que dizem que isto era previsível, que não se trata de algo inesperado e anómalo. São os profetas das coisas acontecidas. Também não virá deles a porta de saída.

Vivemos hoje em clausura. Estamos a reinventar a relação connosco, com o tempo e com a morte. Antes soletrávamos a morte como estação do passado. Hoje a morte invadiu a nossa vida. É a estação do presente. Perdemos o mapa para habitar o mundo. Agora habitamo-nos a nós próprios. Olhamos das janelas de casa a nova fronteira da realidade e procuramos não nos tornar obscuros ao girar em torno de nós próprios. Somos os cidadãos no seu labirinto. Nesta clausura, o tempo comprime o espaço. O físico empobrece e o espírito pode ficar mais ansioso e mais rico. Mudamos a nossa relação com o tempo. A lógica da pressa e do urgente desvanece-se no roçar lento dos dias. Temos mais tempo para a família e os outros. Reinventamos o sentido da vida. Vale a pena investir no humano. Não precisamos de viajar para nos encontrarmos.

Vivemos hoje num tom de cautelosa perplexidade. Face a todas as incertezas do futuro, os verdadeiros antigos já não são Homero ou os homens do Génesis. Somos nós. E, por isso, precisamos de uma ponte entre o mundo antigo e o novo. Mas essa ponte tarda. O que temos hoje é uma ausência que busca uma nova relação com a vida. Falamos à margem do mundo e somos o centro do medo. O vírus gera a incerteza que tudo corrói. Sentimos em nós a gravitação da fadiga. Somos um planeta à beira da perda. É preciso impedir que o medo global alargue o campo da irracionalidade. A nossa civilização não pode tornar-se numa experiência química ou biológica imprevisível. Temos de encontrar a porta de saída. E, por isso, precisamos de um novo alfabeto para habitar o mundo. Precisamos de voltar a falar com o futuro. O problema é que o futuro teima em não falar connosco.

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Hamm, Alemanha, 15 de Abril: precisamos de um novo modelo económico e social que leve ao renascimento da economia e da sociedade EPA/SASCHA STEINBACH

A crise mais importante das nossas vidas exige um novo pensamento, um novo modelo económico e social, uma nova ordem internacional. Não basta dizer que nada será como antes. É preciso trabalhar com uma nova energia e acção para nada ser como antes. Não temos nenhuma certeza sobre a porta de saída de um mundo desmoronado. Mas há algumas coisas que já sabemos.

A primeira: este vírus é um teste a todas as nossas instituições. E, no caso de Portugal, as instituições têm respondido de forma admirável. Como sempre, não faltam os críticos e até aqueles que se indignam porque o país é elogiado pela sua resposta ao vírus. Imaginem então se o número de mortos e de infectados fosse superior a outros países. A resposta das instituições, desde o SNS e DGS ao Governo, Presidente e Parlamento, é a prova de que um país vale pela força das suas instituições e das políticas públicas. E se esta crise contribuir para o seu reforço, isso gerará mais confiança que é crucial para enfrentar o futuro. E podemos também assistir a uma mudança na forma de fazer política, com mais projecto e menos rejeição, com mais cooperação e menos insulto, com mais adesão e menos desconfiança autofágica.

A segunda:o regresso do Estado. Não vamos ter ilusões. A crise sanitária está a deflagrar um tsunami económico e social. Hoje temos no mundo 95% do transporte aéreo, 80% do transporte terrestre, 60% das fábricas parados e 2/3 do PIB mundial paralisado. Nunca aconteceu antes na história. Precisamos de um Estado mais interventivo e mais forte para impedir que a economia entre em coma com uma cascata de falências das empresas e um desemprego galopante. Não é o mercado que vai resolver estes problemas. Sem uma mudança do paradigma económico e a intervenção maior do Estado na economia, sem tabus, vamos viver tempos ainda mais sombrios. Os Estados crescem durante as crises e é mais fácil aumentar a despesa. Sabemos que depois é mais difícil baixá-la e por isso é importante desenhar um modelo para salvar e reconstruir a economia e depois restabelecer um equilíbrio virtuoso entre Estado e mercado, que é o segredo da prosperidade.

A terceira: precisamos de um novo modelo económico e social que leve ao renascimento da economia e da sociedade. O mundo ia num caminho mau com o crescimento das desigualdades, do desperdício e da destruição ambiental. O vírus expôs todas as fragilidades desse modelo, incluindo o das cadeias logísticas longas e desproporcionais e a mobilidade incessante. Precisamos de um novo modelo capaz de gerar uma sociedade mais justa, mais humana, com mais equilíbrio na distribuição da riqueza, maior proteção dos mais vulneráveis, mais tempo para a família, mais ética nos negócios, menor dominância do lucro e da ganância, mais atenção às pessoas e às comunidades, menor destruição ambiental e governos mais interventivos e mais reguladores na economia.

A quarta: a remodelação da ordem internacional. Vivemos num planeta em que as instituições multi-laterais são frágeis ou irrelevantes, em que o nacionalismo e o populismo crescem, em que a cooperação internacional é substituída pelo insulto e a confrontação. Isto não promete nada de bom para o futuro. Henry Kissinger disse um dia: “Uma nova ordem mundial não pode ser concebida como uma medida de emergência, mas é necessário uma emergência para produzir uma nova ordem mundial.” A emergência está aí e, com o mundo desmoronado, a porta de saída é o reforço das instituições multi-laterais e não a sua destruição, é o reforço da cooperação internacional e não do isolacionismo, é a busca da decência e não da jactância e fanfarronice.

Quando uma grande epidemia assolou Atenas e tudo tinha sido tentado para a debelar, Epiménides, segundo conta o filósofo Laércio, advogou a edificação de um santuário ao “Deus apropriado”. Mas isso foi no século V antes da nossa era. Hoje estamos à procura do nosso “Deus apropriado”.

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